Aviso
Este conteúdo é para maiores de 18 anos. Se tem menos de 18 anos, é inapropriado para você. Clique aqui para continuar.

Televisão

Adaptações e tramas sem pitaco do público marcam novelas no pós-pandemia

Sem 'calor do telespectador', autores recorreram a mais de um final

Salve-se quem puder - novela, Globo

Alexia (Deborah Secco), Luna (Juliana Paiva) e Kyra (Vitória Strada) na novela 'Salve-se Quem Puder' Victor Pollak/Divulgação

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

A pandemia da Covid-19 forçou as várias produções culturais a se adaptarem de uma hora para outra. Teatros foram fechados, filmes deixaram os cinemas e até mesmo as novelas foram suspensas para garantir a saúde de elenco e equipe. Algumas coisas até já voltaram, mas sem a normalidade de antes.

As novelas, por exemplo, estão sendo gravadas em meio a vários protocolos sanitários e com mais uma outra novidade: a impossibilidade de mudanças de acordo com a avaliação do público. A Globo, principal produtora de novelas do país, transformou “Amor de Mãe” (2020-2021) e “Salve-se Quem Puder” em obras fechadas.

Isso quer dizer que as tramas foram gravadas, inclusive seus finais, antes de irem ao ar. Isso contraria uma prática das novelas brasileiras, que costumam ser obras abertas, ou seja, transmitidas enquanto ainda são gravadas, o que possibilita mudanças de acordo com a popularidade de algum personagem ou torcida por algum casal, por exemplo.

Daniel Ortiz, autor de “Salve-se Quem Puder” conta que foi pego de surpresa em 2020 quando soube que a novela teria que ser dividida em duas partes. “Tive 48 horas para arrumar uma solução. Já estava escrevendo o capítulo 95 e a história estava tomando outro caminho”, relembra ele em entrevista ao F5.

Para sanar o problema, ele conta que teve que adiantar o final e criar um gancho interessante para a sequência, que começa na próxima segunda-feira (17) com a volta de episódios inéditos após a reexibição da primeira parte por cerca de dois meses.

“Foi bem trabalhoso”, explica, “reescrevi a segunda fase umas quatro ou cinco vezes. Por que, além de ter adiantado 40 capítulos, também tive de fazer as adaptações na história em função das restrições para a gravação seguindo os protocolos de segurança.”

Clarice Greco, doutora e mestre em ciências da comunicação pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP, diz que “as novelas da Globo foram a um tempo atrás as únicas a serem uma obra aberta". “Produzir uma novela durante o seu andamento é uma marca registrada do Brasil”, completa Mauro Alencar, doutor com especialização em teledramaturgia pela USP.

“Com o roteiro em aberto, o autor tem a possibilidade de levar a trama para um lado ou para outro, ele consegue sentir o calor do público”, continua Alencar. “Com o produto pronto, não. Não há o que questionar, aquela obra é fechada. É muito mais cômodo, porque aconteça o que acontecer o produto já está pronto.”

Ortiz conta que a novela passou de 155 capítulos para 107, por isso, “a trama principal precisou ser acelerada e infelizmente algumas tramas secundárias não tiveram o desenvolvimento como eu gostaria”, por uma questão de tempo. Para o escritor, no entanto, a aprovação do público na primeira fase foi um facilitador: “Sabíamos o que estava agradando. Por esse aspecto, não foi difícil."

Com 48 capítulos a menos, Ortiz decidiu focar no trio principal da novela e optou por gravar finais alternativos “com as protagonistas e seus pares, e vamos decidir na última semana de exibição quais vamos usar.”

Para Greco e Alencar, ter mais de um final gravado foi uma ótima solução. “É uma forma de mostrar ao público uma dúvida do que vai acontecer. Se não, fica um pouco sem graça de assistir”, afirma a especialista em ficção televisiva.

Alencar, que é escritor do livro “A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil”, relembra que essa situação aconteceu na novela “A Próxima Vítima” (1995). Ele diz que vale lembrar que “a telenovela é um produto popular, misturando-se com o cotidiano da audiência.”

Para os episódios inéditos, o autor diz que o público pode esperar muita ação. “As tramas vão se desenvolvendo rapidamente, até porque tivemos que condensar 100 capítulos em 53”, explica. “A novela volta num ritmo bem mais rápido que a primeira fase. Todo capítulo tem um acontecimento, muitos ganchos e viradas”, completa Ortiz.

NADA DE COVID-19

Diferente de "Amor de Mãe", a trama de “Salve-se Quem Puder” não vai abordar a pandemia de Covid-19. “As novelas das sete geralmente são mais leves, divertidas, comédias românticas”, explica Ortiz. “Foi uma decisão que funcionou bem. A trama segue de onde parou e como se não tivesse existido essa pandemia mundial.”

Para Greco, a trama “não precisa ficar falando em mortes e chorando porque a telenovela tem um pouco a função de distrair dessas mazelas, mas, ao mesmo tempo, [incluir a pandemia, como na última novela 21h], proporciona uma identificação, não deixa a trama completamente deslocado da realidade.”

Ortiz afirma que o grande desafio foi ter “o cuidado de não propor cenas com muitos figurantes, por exemplo”. “Nada que pudesse gerar uma complexidade para o Fred [Mayrtink, diretor artístico] gravar seguindo os protocolos de segurança.

Greco afirma que o cuidado na hora das gravações precisa ser divulgado para os telespectadores. “Nesse momento, o público sabe que o mais importante é o cuidado com a sociedade e o respeito”, diz. “Esse tipo de atitude é importante pela responsabilidade que a telenovela tem, para cuidar dos atores, bastidores, envolvidos na produção, mas cuidar também do público.”

Para a doutora, as novelas fazem parte da cultura e da rotina do brasileiro. "Em geral, a telenovela representa uma fuga”, explica, “ao ligar a TV no horário da novela e ter uma novela, aquilo traz uma segurança e uma sensação de pertencimento do espaço doméstico. Isso pode ajudar as pessoas a manterem minimamente a rotina.”

OBRAS ABERTAS E RESPOSTA DO PÚBLICO

Acompanhar as respostas dos telespectadores é peça fundamental para obras abertas. “Antes das redes sociais, a Globo fazia até grupo focal. Algumas pessoas eram chamadas para falar sobre o andamento das novelas”, explica Greco.

Alencar relembra uma série de novelas que tomaram rumos diferentes ou focaram em alguma situação específica por ganhar maior afeição do público. Para ele, isso mostra que a teledramaturgia brasileira utiliza “a realidade das ruas como matéria-prima para a ficção.”

“A novela, como a literatura, é um documento histórico, um documento psicossocial fundamental para mostrar o desenvolvimento e a história da humanidade”, completa o especialista em teledramaturgia.

“Redenção” (TV Excelsior, 1966 - 1968)

A maior novela da história da teledramaturgia brasileira incorporou, em seus 596 capítulos, a questão do transplante de coração. “A técnica do transplante de coração começava a ser desenvolvida na África do Sul”, conta Alencar.

“O autor Raimundo Lopes se apropriou disso para o personagem Fernando Silveira [interpretado por Francisco Cuoco] que realizou um transplante de coração na novela”. O especialista conta que foram utilizadas cenas reais do primeiro transplante de coração.

“Inclusive Redenção foi a primeira cidade cenográfica do Brasil, no município de São Bernardo do Campo [Grande SP], onde hoje é a Cidade da Criança”, relembra Alencar. “Isso é da natureza da criação brasileira, incorporar temas da sociedade e do cotidiano e da realidade com a história.”

“Escalada” (Globo, 1975)

Alencar relembra o papel emblemático de Susana Vieira, 78, que interpretou Cândida e levantou a questão do divórcio. “Ela cresceu muito no papel, era uma protagonista ao lado de Tarcísio Meira e Renée de Vielmond.”

“O tema em volta dela era forte, o divórcio, que não existia no Brasil ainda”, relembra. Ele diz que, por ser, uma obra aberta, o autor, Lauro César Muniz, teve a oportunidade de dar maior atenção à personagem.

“Se fosse uma novela toda gravada não se sabe o que iria acontecer. O autor não ia saber que a Susana ia ter essa empatia toda com o público, que o tema iria ser polêmico e iria agradar”, completa ele que conta estar finalizando a biografia da atriz.

“Mulheres Apaixonadas” (Globo, 2003)

A trama trouxe a questão dos maus-tratos aos idosos. Alencar lembra que a novela “fez com que o estatuto do idoso fosse aprovado.” Nos episódios, a atriz Regiane Alves, 42, interpretava Dóris, uma neta que maltratava os avós.

Dóris roubava dinheiro de Leopoldo, interpretado por Oswaldo Louzada (1912 - 2008), e Flora, vivida por Carmen Silva (1916 - 2008), e até mesmo os ofendia gratuitamente. A discussão da trama se tornou importante para o público e a política brasileira.

O então deputado Paulo Paim (PT/RS) criou um projeto de lei aprovado pelo Senado na época da novela. O texto foi sancionado pelo então presidente na época, Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem