Equiparar aborto a homicídio estilhaça a inocência de crianças vítimas de violência sexual
PL 1904 é um retrocesso nos direitos reprodutivos e atinge ferozmente meninas abusadas
Minha mãe notou, lá pelos meus 11 anos, que cresciam pelos nas minhas axilas e meu humor estava oscilando mais do que o normal. Sentou comigo, explicou-me que algumas coisas estavam mudando, falou como funcionava esse negócio de menstruação, deu-me alguns absorventes e me explicou como usá-los. Antes disso, eu até já tinha ouvido falar que mulheres sangravam pelo pipi, tanto que, aos 8 anos, acordei meus pais no meio da madrugada para mostrar que já tinha acontecido comigo —nessa ocasião, era só salada de beterraba colorindo o xixi. Mas, nesse papo sério com a minha mãe, entendi que o sangue era real, muito real, e uma hora ele iria chegar de verdade. Entrei em negação.
Alguns meses depois, estava de férias na praia em companhia apenas de minha avó. Fui ao banheiro e vi uma mancha vermelha na minha calcinha e nos fundilhos do meu short. Lavei escondido. E neguei. Se antes tinha sido beterraba, então dessa vez haveria de ser tomate. Comíamos muito macarrão à bolonhesa naquela época, havia de ser isso. Não, eu não havia menstruado. E achei que a avó não tinha porque saber que eu estava mijando vermelho por causa dos tomates. Não usei os absorventes que minha mãe me dera.
Passado um mês, a coisa se repetiu. Vi que não tinha jeito, não adiantava mais negar. Eu agora era uma menina de 11 anos que ficava menstruada. E ovulava. Eu só queria saber de jogar videogame e cartas com meus primos e de ler romances policiais e gibis da Turma da Mônica. Nunca havia beijado ninguém, e demoraria ainda uns dois anos para isso acontecer. Mas, àquela altura, eu já podia engravidar.
Minha mãe foi exemplar. Atenta e honesta, ela percebeu a puberdade chegando e me contou com calma como a vida seria a partir daquele marco. Meu colégio católico, desses em que a aula só começava depois de uma Ave-Maria e um Pai-Nosso, também tinha seus méritos. Mesmo naquele ambiente religioso, cheio de freiras, tínhamos aulas de educação sexual desde cedo. Ainda assim, aquele período foi bastante confuso pra mim.
Eu odiava a coisa toda. Odiei desde o primeiro momento, tanto que neguei ser o que era, e sigo odiando até agora ter que menstruar. Naquela época, minhas regras não conheciam nenhuma regra. Às vezes demoravam três meses, às vezes eu mal saía de uma e a outra já chegava. Foi assim, irregular, durante anos da minha adolescência –para se ter uma ideia, cheguei a ficar um ano e meio sem menstruar aos 16 anos, sintoma comum entre quem sofre de anorexia.
Fiz esse longo preâmbulo de compartilhar uma experiência de uma menina –branca, cisgênero, de classe média baixa e urbana– para a partir dela refletir sobre as transformações do corpo que não interrompem a nossa infância, mas se entrelaçam com ela. A ingenuidade, a inocência e o pensamento lúdico não somem quando a menarca vem. E, diferentemente de mim, muitas meninas jamais têm uma conversa aberta com adultos sobre isso, seja em casa ou no colégio, porque o assunto é tabu.
Na mente de uma criança sem informação, a menstruação se torna um fenômeno difícil de compreender e prever. Que dirá uma gravidez. Para crianças vítimas de violência sexual, o véu de silêncio é ainda maior, já que elas são coagidas a não contarem para ninguém o que se passa com elas –em 70% dos casos o violador é alguém próximo.
E é assim que muitas meninas engravidam e demoram meses, muitos meses, para perceberem que estão gestando. Dependendo de onde essa menina mora, a família precisa viajar e gastar bastante tempo e dinheiro para ir a um local que preste esse serviço de forma legal. E é assim, entre negações, tabus, silêncios, desinformações e faltas de acesso que as semanas vão passando.
Por isso que o Projeto de Lei 1904 é um retrocesso nos direitos de todas, mas principalmente de crianças e adolescentes. Proposto por um grupo de deputados conservadores, o PL quer determinar que todo e qualquer aborto realizado após 22 semanas seja equiparado a homicídio –mesmo que se trate de circunstância em que o procedimento é legal, como estupro, risco de vida para a gestante e anencefalia fetal. Se aprovado no legislativo e não vetado pelo presidente Luis Inácio Lula da Silva, mulheres, meninas e pessoas que podem gestar estarão sujeitas a penas maiores do que aquelas de condenados por estupro.
A menina de 11 anos que eu fui era ingênua e inocente o suficiente para acreditar que seu problema era comer tomates demais, e é para ela que escrevo esta coluna, na esperança de que as pessoas se deem conta de que tanto ela quanto as outras merecem ser protegidas e não criminalizadas.
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