'Manhãs de Setembro' consegue ser previsível e original ao mesmo tempo
Primeira série brasileira com protagonista trans está na Amazon Prime Video
De uma hora para a outra, um adulto se vê obrigado a cuidar de uma criança. A princípio renitente, aos poucos ele vai se deixando encantar. No final, os dois formam um laço inquebrantável.
Essa premissa manjada já rendeu ótimos filmes. De bate-pronto, vêm à cabeça títulos como o americano “Gloria” (1980), o brasileiro “Central do Brasil” (1998) ou o tcheco “Kolya”, vencedor do Oscar de filme estrangeiro de 1996.
Também já foi explorada em longas de temática LGBTQIA+. Como a comédia espanhola “Filhote” (2004), em que um integrante da comunidade dos “ursos” (homens gays gordos e peludos) abdica de sua vida agitadíssima porque sua irmã foi presa na Índia e seu sobrinho não tem com quem morar.
O exemplo mais recente dessa estirpe é a série brasileira “Manhãs de Setembro”, recém-chegada à plataforma Amazon Prime Video. Mas há um ingrediente novo que eu não me lembro de ter sido usado antes: a protagonista é uma mulher trans que de repente descobre que tem um filho.
Os cinco episódios da primeira temporada foram escritos por Alice Marcone (uma mulher trans), Carla Meirelles, Josefina Trotta e Marcelo Montenegro, a partir de uma ideia de Miguel de Almeida, e dirigidos por Luís Pinheiro e Dainara Toffoli.
Apesar da ação se passar em São Paulo, muitas externas foram gravadas em Montevidéu. Por causa da pandemia, a Amazon transferiu muitas de suas produções latino-americanas para a capital do Uruguai, considerada mais segura.
A cantora Liniker, em seu primeiro papel dramático, vive a motogirl Cassandra, que à noite costuma cantar sucessos de Vanusa em uma boate de travestis. Vanusa, aliás, é uma espécie de anjo da guarda da personagem.
Sempre que está angustiada, Cassandra ouve em sua cabeça conselhos de sua musa (proferidos, na verdade, pela atriz Elisa Lucinda).
Mas, quando a série começa, Cassandra tem razões para estar feliz. Ela finalmente conseguiu alugar um apartamento, o trabalho vai bem e o namoro com um garçom, melhor ainda, apesar do rapaz ser casado.
Essa harmonia é quebrada com a súbita chegada de Leide, um namorico da época em que Cassandra ainda se identificava como homem. Leide aparece com Gersinho, que ela diz ser filho de Cassandra. Os dois precisam de toda a ajuda possível: dormem num carro quebrado, estacionado debaixo de um viaduto, e falta dinheiro para tudo.
A reação de Cassandra é péssima. Não quer ser pai, nunca quis ser pai e não é justo ser pai justamente no instante em que sua vida como mulher parece decolar. Ela até deixa que mãe e filho durmam alguns dias em seu apartamento, mas quer que eles desapareçam o quanto antes.
Sabemos que, em algum momento, Cassandra irá ceder e assumir esse garoto como seu. Mas os roteiristas, na tentativa de adiar ao máximo este desfecho, acabam tornando a protagonista pouco empática. É especialmente desagradável a cena em que ela se recusa a comprar uma escova de dentes nova para Gersinho por achá-la cara demais.
A repetição insistente de que Cassandra é uma mulher trans que sofreu muito e superou mil obstáculos para, finalmente, começar a ter uma vida melhor, não serve como desculpa para o egoísmo da personagem. O filho é dela, a responsabilidade também, e não há exceção na lei para pais travestis ou transexuais.
Felizmente, isso não chega a comprometer “Manhãs de Setembro”. Muito graças ao elenco: Liniker se sai bastante bem neste primeiro grande desafio como atriz, e Karine Teles, que faz Leide, está excepcional como de costume –uma contradição em termos, mas que serve direitinho para ela. O ator mirim Gustavo Coelho, intérprete de Gersinho, é uma revelação.
Original e previsível ao mesmo tempo, “Manhãs de Setembro” já tem uma segunda temporada confirmada. E merecida, pois se trata de um dos lançamentos nacionais mais interessantes de 2021.
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