Assédio sexual em empresas ainda é pouco explorado na TV e no cinema
Machismo estrutural explica por que existem poucos filmes e séries sobre o assunto
Um ambicioso executivo precisa lidar com sua nova chefe, que também é sua ex-namorada. Logo na primeira reunião que eles têm a sós, ela avança sobre ele, e deixa claro que a promoção que ele tanto almeja só acontecerá se os dois se tornarem amantes. Só que o mocinho resiste bravamente, pois é um profissional íntegro e um marido respeitoso. A víbora então resolve se vingar, e o denuncia por assédio à direção da empresa.
Este é, em linhas gerais, o enredo de "Assédio Sexual", um filme de 1994 com Michael Douglas e Demi Moore nos papéis principais. O roteiro é baseado no livro do mesmo nome de Michael Crichton, autor de best-sellers como "Parque dos Dinossauros".
Foi no começo da década de 1990 que o assédio sexual em ambientes corporativos entrou em pauta. Até então, uma cortina de silêncio quase absoluto encobria o assunto. Já se sussurrava sobre o "teste do sofá" e outros abusos do gênero, é certo. Mas um chefe homem que passasse a mão (ou coisa pior) em suas funcionárias mulheres era encarado com naturalidade. Um fato da vida.
A ascensão de mulheres a posições de comando em grandes empresas fez com que essa mentalidade começasse a mudar. No entanto, é sintomático que uma das primeiras obras de ficção a abordar o tema tenha invertido os papéis. A vilã de "Assédio Sexual", a grande predadora, é a mulher, essa malvada. O homem, pobrezinho, é a vítima.
Os tempos eram outros, e um filme como "Assédio Sexual" talvez não fosse produzido hoje em dia. Mas o assédio sexual ainda é pouco abordado pelo cinema e pela televisão do século 21, apesar da campanha #MeToo e dos inúmeros escândalos que vêm ocupando manchetes do mundo inteiro.
Por quê? A resposta não tem nada de surpreendente: por causa do machismo que permeia toda a sociedade. Os postos-chave do poder, tanto na esfera pública como na privada, ainda são ocupados, em sua esmagadora maioria, por integrantes do sexo masculino. No caso específico da indústria do entretenimento, isto também ocorre entre diretores, roteiristas e técnicos em geral. Para muitos, mesmo os que se dizem feministas, o assédio simplesmente não é logo tão relevante assim. Em outras palavras: não é com eles.
Contam-se nos dedos os filmes, séries e novelas que usaram o assédio sexual em locais de trabalho como matéria-prima dramática. No cinema americano, o longa "Escândalo" (2019) tratou dos muitos abusos cometidos por Roger Ailes, o ex-chefão do canal de notícias Fox News. O mesmo personagem é o protagonista da minissérie "A Voz Mais Forte", disponível no Globoplay.
Aqui no Brasil, o abuso sexual até entrou como subtrama em obras como "O Outro Lado do Paraíso" e "Malhação", da Globo, ou "Amor Sem Igual", da Record. Só que em nenhum desses títulos ele acontecia em meio à relação profissional entre um superior e suas subordinadas. Consultei então o crítico Nilson Xavier, especialista em novelas, e ele lembrou que a policial Maura (Nanda Costa) era assediada por seu chefe, o delegado Viana (Carlos Betão) em "Segundo Sol" (Globo, 2018).
O melhor exemplo recente é mesmo a série "The Morning Show", lançada um ano atrás pela plataforma Apple TV +. O curioso é que, em sua concepção, o programa não iria abordar o assédio sexual –apenas os bastidores de um telejornal matutino. Mas o assunto acabou se impondo, e os roteiros foram reescritos. Detalhe importante: ao longo desse processo, o showrunner (algo como o roteirista-chefe) original, um homem, foi substituído por uma mulher.
Também é curioso observar como o personagem Mitch Kessler (Steve Carell), reage com surpresa, mágoa e indignação ao ser acusado de comportamento impróprio por inúmeras mulheres que trabalharam com ele. Mitch garante que todos os relacionamentos que teve na vida foram consensuais, e acha que é vítima de um grande complô para derrubá-lo. Lembra alguém da vida real?
Um adendo: na semana passada, publiquei uma coluna elogiando a gestão de Carlos Henrique Schroder. Disse que o maior legado do atual diretor-geral da Globo, que deve deixar o posto em 2021, foi o resgate da credibilidade do jornalismo da emissora. Essa credibilidade acaba de ser abalada. Nenhum dos noticiários da casa repercutiu a matéria da revista piauí sobre o caso Marcius Melhem, que dominou as redes sociais neste último fim de semana. Nem mesmo o portal G1, que pertence ao Grupo Globo, traz qualquer menção ao assunto. A Globo parece querer voltar aos velhos maus tempos, quando ignorava as notícias que a incomodavam, na esperança de que eles desaparecessem sozinhos.
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