Tony Goes

Na estreia da minissérie 'Lia', protagonista surge como Cinderela bíblica

Record dá viés feminista a uma história do Antigo Testamento

Raquel (Graziella Schmitt) ganhará o amor de Jacó (Felipe Cardoso) na minissérie "Lia"
Raquel (Graziella Schmitt) ganhará o amor de Jacó (Felipe Cardoso) na minissérie "Lia" - Record
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Mais cedo ou mais tarde, a teledramaturgia da Record iria abordar a figura de Jacó, filho de Isaac e neto de Abraão. Os três são os grandes patriarcas do livro do Gênesis, o primeiro do Antigo Testamento: fundadores não só da religião judaica, como do próprio povo judeu.
 
Os filhos de Jacó com suas quatro mulheres –as mulheres Lia e Raquel, e as concubinas Bila e Zilpa– deram origem, segundo a Bíblia, às 12 tribos de Israel (nome pelo qual o próprio Jacó também é conhecido). Todos os judeus, portanto, seriam descendentes dele.
 
Por tudo isso, a minissérie "Lia", que estreou na Record nesta terça (26), tem um quê de subversiva. A história de Jacó é contada do ponto de vista de uma de suas mulheres, a personagem-título, que, na Bíblia, não passa de uma coadjuvante.
 
Além disso, temas contemporâneos estão presentes no texto capitaneado por Paula Richard e desenvolvido por uma equipe de roteiristas 100% feminina. São assuntos que não constavam do texto bíblico original, mas com forte ressonância nos dias de hoje: violência contra a mulher, assédio sexual, o papel da mulher na sociedade.

No primeiro capítulo, excessivamente didático, Lia (Bruna Pazinato) é apresentada como uma espécie de Cinderela canaanita. Sua mãe morre durante o parto de sua irmã mais nova, Raquel (interpretada por Graziela Schmit na idade adulta), e as duas são criadas pela madrasta Laila (Suzana Alves), a outra mulher do pai, Labão (Theo Becker). Mas só Lia sofre maus-tratos, o que não a impede de se tornar um anjo de candura.
 
A ponto, inclusive, de cuidar dos machucados que Laila sofre nas constantes agressões do rude Labão. Na pequena comunidade pastoril onde vive, a protagonista tem uma única amiga, a escrava Zilpa (Thais Muller), ainda mais humilhada e perseguida por todos os demais.
 
Mesmo assim, as três moças falam na necessidade de arranjar um bom marido, o único caminho possível para uma mulher daquele tempo. Nesse ponto, “Lia” chega a lembrar “Orgulho e Paixão”, atual novela da Globo da faixa das 18h, cheia de raparigas casadouras.
 
O interessante é que, em “Lia”, todas elas se unirão ao mesmo homem, Jacó (Felipe Cardoso), que fez uma entrada triunfal no final do primeiro episódio. Fiquei curioso para ver como as autoras abordarão esse relacionamento poliamoroso, e como se dará a dinâmica entre as várias mulheres do patriarca.
 
Visualmente, “Lia” é mais um passo adiante no apuro crescente das produções bíblicas da Record. Cenários e figurinos estão cada vez mais convincentes, e foi acertada a decisão de usar uma paleta de cores esmaecidas: a minissérie ganha assim uma identidade visual própria, bem distinta da explosão de cores de “Os Dez Mandamentos”.
 
Mas os diálogos pouco coloquiais não ajudam, e os atores se ressentem da falta de direção. Este é um problema recorrente da Record, e ainda não foi desta vez que conseguiu ser sanado. Graziela Schmitt, por exemplo, está exagerando na afetação da cobiçada Raquel, desfilando pela aldeia como se estivesse em um comercial de maquiagem.
 
Mesmo assim, “Lia” tem um forte potencial para se tornar a melhor produção bíblica da Record de todos os tempos –até porque os poucos capítulos previstos impedem maiores enrolações. Pena que o público não reagiu. A estreia da minissérie amargou o terceiro lugar em seu horário, com menos de dez pontos de média –a mais baixa de todas as novelas e séries bíblicas da Record.
 
Será que “Lia” é moderna demais para o espectador médio da emissora?

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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