Tony Goes

A dificuldade brasileira de ficcionalizar a própria política

Falta de traquejo com ficção política explica um pouco do mal-estar que 'O Mecanismo' vêm causando

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Cena da série 'O Mecanismo' - Divulgação
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Filmes e séries de TV que dramatizam acontecimentos políticos da vida real são comuns em todos os países do Ocidente que têm uma indústria sólida de entretenimento.

Nos Estados Unidos, programas como “House of Cards” (Netflix) ou “Veep” (HBO) imaginam a podridão dos bastidores da Casa Branca, em chave cômica ou dramática.

E são só os exemplos mais recentes de uma tradição que vem de longe. Os americanos jamais tiveram o menor pudor em retratar nas telas seus escândalos. Como Watergate ou Irã-Contras, que renderam vasta filmografia.

O fenômeno se repete na França, na Itália, na Alemanha, ainda que com menos intensidade do que nos EUA. Até na vizinha Argentina é frequente que o noticiário político sirva de inspiração para roteiristas e diretores.

Esta tradição inexiste no Brasil. Nem mesmo a história menos recente costuma ser aproveitada dramaturgicamente. É incrível, por exemplo, que tenhamos uma única cinebiografia dramatizada (“Getúlio”, 2014), de Getúlio Vargas. Já pensou em quantos filmes haveriam sobre nossa figura-chave do século 20 se ela fosse americana?

De vez em quando, as novelas da Globo incluem algum senador corrupto ou coronel autoritário em seus enredos. A maioria não é calcada diretamente em nenhuma figura real. Tratamos nossos políticos com luvas de pelica, justamente nas tramas que alcançam maior repercussão.

Essa nossa falta de traquejo com a ficção política explica um pouco do mal-estar que obras como o longa “Polícia Federal - a Lei é para Todos” ou a série “O Mecanismo” (Netflix) vêm causando entre alguns setores.

Estávamos acostumados com hagiografias, como “Lula, o Filho do Brasil” (2010). Qualquer visão mais crítica causa um grande desconforto.

Não que a polarização não aconteça lá fora. Ela também se espalhou feito um câncer pelo mundo inteiro, e filmes ou séries que retratem claramente políticos de verdade, com nomes fictícios ou não, também levam paulada do lado que se sentiu ofendido.

Mas a cultura brasileira ainda guarda vestígios de patrimonialismo. Evitamos mexer com os poderosos de qualquer área. Só para lembrar: faz pouquíssimo tempo que liberamos as biografias não-autorizadas, que são fato corriqueiro em lugares mais civilizados.

Por outro lado, parece que as coisas estão mudando. O sucesso dos títulos mencionados vai encorajar produtores a investir neste filão (a Netflix não divulga números, mas dá para desconfiar que “O Mecanismo” esteja bombando depois de tanta propaganda grátis nas redes sociais).

É ótimo que seja assim. Nenhum país pode se dar ao luxo de ter medo de se olhar no espelho.

E a nossa teledramaturgia, uma das mais vigorosas do planeta, finalmente está perdendo esse medo.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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