Tony Goes

Rita Lee e a encaretação do Brasil

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Estou apavorado com a reação dos internautas ao que aconteceu com Rita Lee em Aracaju. A maioria dos comentários que leio por aí são veementemente contrários à cantora. Rita é chamada de criminosa e incitadora à desordem pública, e comparada até mesmo a assassinos e pedófilos. Menos, né, gente?

Para alguém com tantos anos de estrada como eu, este é só mais um sinal de como nosso país encaretou nos últimos anos. A cultura brasileira se tornou mais conservadora, mais tradicional, muito menos transgressora.

Quando foi que isto começou? Em meados dos anos 90, com a ascensão de Sandy e Junior? A dupla mirim pregava abertamente as virtudes da castidade. Hoje adulta e casada, Sandy não consegue se livrar da imagem de santinha. Qualquer declaração sua é imediatamente "trollada" na blogosfera.

Sandy e Junior são apenas um sintoma, claro. Podemos apontar várias causas para esta virada conservadora: o crescimento da classe C, a partir do plano Real; a ascensão das igrejas evangélicas; uma reação natural à "libertinagem" dos anos 60 e 70; a disseminação da AIDS, e assim por diante.

Muitas pesquisas comprovam que o jovem brasileiro de hoje é mesmo mais conservador que o de algumas décadas atrás. Poucos pensam em estilos alternativos de vida: a maioria quer ganhar dinheiro logo, se casar e ter 2.3 filhos, como nos comerciais de margarina.

Essa garotada não viveu sob a ditadura militar, então não sabe o que é repressão para valer. Além do mais, a internet permite que neguinho dê vazão a seus instintos autoritários numa boa, protegido pela rapidez e pelo anonimato.

Ao meu ver, Rita Lee encerrou com chave de ouro sua carreira nos palcos. Sua reação à ação dos policiais que achacavam o público de seu show em Aracaju foi emocional e exagerada, sim, mas totalmente coerente com sua trajetória. Rita teve inúmeros precalços com a polícia ao longo da carreira e é natural que sinta "paranoia", como ela mesma disse, ao ver tanta polícia misturada à sua plateia.

Não, não acho que só pelo fato de ser artista ela tenha o direito de dizer qualquer coisa. A lei vale para todos. Mas também acho a reação da polícia sergipana foi absurdamente desproporcional: pelo que contou Roberto de Carvalho em seu perfil no Facebook (que é liberado para todo mundo), ele e Rita foram praticamente sequestrados à saída do show, num ato claro de intimidação. Parece que até o Estatuto do Idoso foi violado (Rita tem 67 anos).

Mas para mim o mais apavorante nem é a reação truculenta da polícia. É o coro de apoio que ela vem recebendo na internet, como se Rita Lee fosse membro da al-Qaeda ou coisa que o valha. Não é, gente: é uma roqueira das antigas, que mantém o espírito libertário e desafiador, não uma cantorazinha pré-fabricada e sem ideias na cabeça.

Mas muitas pessoas não entendem assim. Tenho medo, muito medo deste Brasil caretão que está surgindo.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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