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Thiago Stivaletti

Genial com Barbosa e o vampiro Vlad, Ney Latorraca conseguiu ser maior do que os programas em que aparecia

Ao longo dos anos, Globo entendeu que era melhor deixar o galã de lado para apostar num comediante genial sem equivalentes na TV

Ney Latorraca caracterizado como o vampiro Vlad em 'Vamp' (1991) - Reprodução
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São Paulo

Com a morte de Ney Latorraca, é um pedaço muito grande que se vai para quem viveu a infância entre fim dos anos 1980 e começo dos 1990. Ele já era um dos atores mais fortes do TV Pirata, o melhor humorístico da história do Brasil, que quebrou todos os padrões de um programa de humor na Globo.

Um dia, os redatores decidiram criar "Fogo no Rabo", uma novelinha dentro do programa, paródia de "Roda de Fogo", novela das 21h exibida alguns anos antes.

E nela aparecia Barbosa, um velho babão de cabelos brancos e queixo proeminente que adorava repetir o próprio nome ("Bar-booooosa!") e o final das frases de qualquer pessoa à sua volta. O que era uma bobeira sem noção virou um sucesso imediato com o público.

Barbosa cresceu na novelinha, ganhou outras cenas quando o folhetim terminou e até um especial só para ele, o "Quem Matou Barbosa?". Spoiler: o assassino foi o próprio Ney Latorraca, que matou o personagem porque não aguentava mais todo mundo pedindo para ele imitar o velhinho louco.

(Devo admitir que essa lembrança tem um quê amargo para mim. Meu último nome é Barbosa, e na escola, toda vez que a professora lia meu nome completo na chamada, a classe inteira me zoava imitando o Ney. Foi duro, mas superei com anos de terapia.)

Com o fim do TV Pirata, era difícil imaginar como Ney voltaria às novelas que fazia desde 1968, quando estreou na revolucionária "Beto Rockefeller", na TV Tupi, ao lado de Luiz Gustavo. Houve até alguns papéis de galã, como aqueles em "Sem Lenço, Sem Documento" (1977) e na charmosa série "Memórias de um Gigolô" (1986), os dois ao lado de Bruna Lombardi.

Mas a Globo encontrou sem querer o veículo perfeito com uma das melhores novelas das sete de sua história. Em "Vamp" (1991), o vampiro Vlad começava com uma figura sinistra, mas o terror seria um caminho muito fácil para Ney.

Ao longo das semanas, o conde obcecado pela linda roqueira Natasha (Claudia Ohana) foi despirocando até transformar a novela numa comédia total. Foi o caso raro de ator cuja ousadia levou a novela para caminhos inesperados e muito mais interessantes.

Para a Globo, o sucesso de Ney no TV Pirata e em "Vamp" serviu como volta por cima depois de um amargo fracasso. Era "Um Sonho a Mais" (1985), novela das sete em que ele vivia seis personagens diferentes, como o excêntrico milionário Volpone e até uma mulher, Anabela, que vivia inseparável de suas duas amigas, Florisbela (Marco Nanini) e Clarabela (Antônio Pedro).

"Um Sonho a Mais" sofreu com pouca audiência, a troca de autor logo no início e muita censura do governo. Mas foi um daqueles experimentos ousados que a Globo nunca mais ousou fazer, desde que o controle remoto chegou às casas, e as pessoas podiam rapidamente trocar uma novela maluca por algo mais conservador em outro canal.

Foi logo depois do fim da malfadada novela que Ney se juntou a Marco Nanini para fazer nos palcos o maior sucesso popular da época, a comédia "O Mistério de Irma Vap", em que cada um vivia vários personagens, numa troca de roupas incessante. Com direção de Marília Pêra, a peça estreou em 1986, rodou o Brasil inteiro e ficou 11 anos em cartaz, fazendo os dois entrarem para o Guinness como peça por mais tempo em cartaz no mundo com o mesmo elenco.

Lembro que, lá por 1989, ainda criança e morando em Santos (aliás, terra natal de Seu Neyla), comecei a encher o saco do meu pai para me levar a São Paulo e ver a peça no Cultura Artística. Era uma catarse coletiva na plateia, que ria sem parar. Em 1996, último ano em cartaz, fui rever o espetáculo quando eles passaram por Santos.

A peça já tinha virado uma bagunça completa, com Ney e Nanini fazendo palhaçadas aleatórias, repetindo mil vezes um gesto ou movimento engraçado para a plateia continuar rindo. Estavam claramente cansados de um sucesso que durou tempo demais e os impediu de curtir novos projetos no teatro.

Em 2001, Ney ainda viveu um último personagem marcante, o manso Cornélio de "O Cravo e a Rosa". Mas a verdade é que, depois de "Vamp", a TV nunca mais foi grande o suficiente para o seu talento. Sua voz inconfundível e sua liberdade criativa vão viver para sempre na memória de quem viu o seu auge.

Thiago Stivaletti

Thiago Stivaletti é jornalista e crítico de cinema, TV e streaming. Foi repórter na Folha de S.Paulo e colunista do UOL. Como roteirista, escreveu para o Vídeo Show (Globo) e o TVZ (Multishow).

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