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Thiago Stivaletti
Descrição de chapéu Televisão

Vale tudo num remake de novela?

Se Odete Roitman não odiar o Brasil e não for racista, melhor escrever outra trama do zero

Beatriz Segall como Odete Roitman na novela 'Vale Tudo', de 1988 - Divulgação/Globo
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O Brasil mudou, ou continua o mesmo de 36 anos atrás? "Vale Tudo" (1988) continua botando o dedo na ferida. Repercutiu muito mal entre internautas e noveleiros a entrevista que a autora do remake, Manuela Dias, deu à Folha na última segunda-feira. Nela, diz, entre outras coisas, que "falar que o Brasil é uma porcaria", como fazia Odete Roitman, "não traz mais nada hoje em dia".

"Em que Brasil Manuela Dias vive?", "se em Vale Tudo nem tudo vale, acho que não precisamos de uma nova versão", "então que deixassem a novela lá nos anos 80; qual o sentido de resgatar um texto que não cabe mais nos dias de hoje?" foram alguns dos 700 comentários, quase todos irados, no post do jornal no Instagram. Nas redes de Hugo Gloss, o post sobre a entrevista rendeu mais 540 comentários, como: "O politicamente correto esta destruindo até mesmo as obras aclamadas do passado".

A gritaria procede. Muito talentosa em obras que já escreveu, como "Amor de Mãe", a autora está bem enganada em sua visão cor-de-rosa do país. Seguimos reclamando do Brasil todo dia, agora mesmo de um apagão na maior cidade do país por conta de uma privatização que só favoreceu meia dúzia. Alguém tem dúvidas em quem dona Odete teria votado no segundo turno de 2018? A dona da TCA não só seguiria falando tudo o que sempre falou, mas agora de peito aberto, por encontrar na extrema direita uma legitimação para os seus preconceitos.

Agora, vamos ter a oportunidade de ter atrizes negras vivendo a mãe batalhadora Raquel Acioly (Taís Araujo) e a ambiciosa Maria de Fátima (Bella Campos). Mas de que adianta refazer "Vale Tudo" se não for para escancarar o racismo (direto ou velado) que os pretos encaram todo dia no Brasil? Se a Odete de 1988 deixou bem claro pensar que "isso aqui é uma mistura de raças que não deu certo", sua briga com Raquel tem que ser também um conflito racista.

CORAÇÃOZINHO NO JATINHO

"Desse jeito, Maria de Fátima vai gostar de pobre, Heleninha vai ser contra bebida alcoólica e, no final, o Marco Aurélio vai dar um coraçãozinho pro Brasil [em vez de uma banana]", resumiu, enfurecida, minha amiga Vivian em poucas linhas no grupo do zap. Por mais que me faça rir imaginar o personagem do Reginaldo Faria como a nova Maya Massafera, nada disso parece um bom sinal do que vem por aí.

Do jeito que está, o cenário parece indicar a criação de mais uma novela genérica. Se Odete não falar mal do Brasil, ela será igualzinha dezenas de vilãs ricas que já vimos depois dela. Entendo que hoje é errado nos divertirmos com uma pessoa que tem problemas com álcool, mas se Heleninha não for minimamente divertida como pessoa, será como outras tantas personagens alcoolistas dramáticas e sofridas que já vimos em outras histórias.

Raquel, que vivia gritando "Sangue de Jesus tem poder!", poderia ser uma empreendedora evangélica, que se apoia na rede da sua igreja para encontrar apoio emocional e até financeiro, ouvindo de vez em quando o que o pastor ou seus colegas têm a dizer sobre política.

TV PAZ E AMOR

Me parece que essa distorção de expectativa não passa só pela opinião ou ponto de vista da autora sobre nossa novela mais icônica. O problema é que a TV aberta, cada vez mais comprometida com anunciantes, fazendo dois ou três merchans por capítulo hoje em dia, não fica nada à vontade para retratar nosso país polarizado, numa guerra da extrema direita contra a esquerda. Haveria um risco enorme de perder espectadores tanto de um lado como do outro.

Não sou ingênuo de achar que algum dia a Globo poderia mostrar uma cena em que Odete é acusada de ser bolsominion, ou que a vilã pudesse chamar o próprio filho, Afonso, de petista enrustido. Mas essa polarização pode estar lá, viva e presente em cada cena, ainda que não se dê nome aos bois.

Em 1988, a crise econômica era gigante, mas havia um pequeno respiro político pós-ditadura, antes da desilusão com Collor um ano depois. Em 2024, temos uma maior estabilidade econômica, mas nunca os brasileiros se odiaram tanto entre si, até mesmo dentro das famílias. Se não for para tomar esse pulso do país, a nova "Vale Tudo" pode valer muito pouco.

Thiago Stivaletti

Thiago Stivaletti é jornalista e crítico de cinema, TV e streaming. Foi repórter na Folha de S.Paulo e colunista do UOL. Como roteirista, escreveu para o Vídeo Show (Globo) e o TVZ (Multishow).

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