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Thiago Stivaletti
Descrição de chapéu Silvio Santos

Ao mesmo tempo simpático e cruel, Silvio Santos foi a maior face do capitalismo à brasileira

Por meio de seus programas, ele vendia o Carnê do Baú e a Tele-Sena, fazendo com que a TV alimentasse seus negócios e vice-versa

Silvio Santos trocou a Globo pela sua própria emissora, a TVS Rio nos anos de 1970 - Divulgação/SBT
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São Paulo

O Brasil sempre teve três reis: Pelé, Roberto Carlos e Silvio Santos. Um do futebol, outro da música e um terceiro da TV. Como Pelé se aposentou em 1977 e Roberto dá as caras na TV só uma vez por ano, Silvio, morto neste sábado (17) aos 93 anos, foi, de longe, o mais influente dos três, entrando na sala de casa de milhões de brasileiros por 60 anos.

Com seu sorriso largo, Silvio foi por décadas sinônimo de carisma, simpatia e diversão. Para além de outros apresentadores que despontavam na rádio e na TV dos anos 50, ele tinha uma vantagem que adorava contar: tinha sido "camelô", ou ambulante, nas ruas do Rio de Janeiro. Aprendeu nas ruas a entender aquilo que o povo queria, e a melhor maneira de vendê-lo.

O dono do SBT foi um caso único de sucesso estrondoso em dois terrenos diferentes, como empresário e comunicador. O primeiro programa que apresentou, "Vamos Brincar de Forca" (1960), na TV Paulista, já prenunciou aquilo que fez por toda a vida: a apresentação de jogos e brincadeiras simples, de facílima compreensão para um povo minimamente alfabetizado.

Mas o apresentador não teria ido tão longe se não fosse o outro lado da moeda: o Silvio empresário. Enquanto crescia sua fama de apresentador, Silvio expandia seus negócios para muito além da venda de rua com uma marca conhecida de todos os brasileiros: o Baú da Felicidade. O assinante do famoso Carnê do Baú pagava uma prestação mensal; com ele, concorria a prêmios todo mês e depois ainda podia trocar seus pontos por produtos nas lojas do Baú.

Depois, veio ainda a Tele-Sena, um título de capitalização combinado a sorteio de prêmios em dinheiro. A receita de programas de sucesso mais prêmios, que faziam a publicidade automática (ou orgânica, como se diz hoje) do principal negócio de Silvio criou uma máquina infalível por muitos anos.

Sorrindo em três emissoras

Foi com essa força de empresário que Silvio conseguiu trocar a Globo, na qual foi apresentador por sete anos, pela sua própria emissora, a TVS Rio – que depois da criação da TVS São Paulo, deu origem ao Sistema Brasileiro de Televisão, o SBT. O ano de 1976 resume bem a sua força como apresentador e empresário: o Programa Silvio Santos chegou a ser exibido simultaneamente em três emissoras: Tupi, a nova TVS e a Record – da qual ele tinha comprado 50% das ações. Um feito jamais repetido no Brasil.

Quem foi criança nos anos 80 e 90 passou dias e mais dias de domingo acompanhando seus jogos, seu jeito espontâneo de interagir com os participantes e com a plateia. Silvio era ao mesmo tempo cruel e simpático, cioso da sua autoridade como apresentador, mas sem nunca tirar seu sorriso do rosto. E assim, tornou-se o maior símbolo do nosso capitalismo à brasileira, ostentando o seu poder econômico por meio da alegria artificial da televisão.

São inúmeros os programas que ganharam espaço na memória dos brasileiros, do Show de Calouros ao Qual É a Música, do Namoro na TV à Porta da Esperança. Mas o programa que mais resume essa lógica é o Topa Tudo por Dinheiro, um dos sucessos mais duradouros da carreira de Silvio. O próprio nome já indicava: aquele era um programa pra quem queria faturar, sem medo de constrangimentos.

Quem quer dinheiro?

Todo brasileiro tem na memória a imagem de Silvio atirando seus aviõezinhos de papel-moeda para uma plateia enlouquecida, composta principalmente de mulheres que se derrubavam no chão e se estapeavam para pegar uma cédula do chão.

Em seu quadro mais famoso, as pegadinhas que fizeram a fama de Ivo Holanda, o riso de Silvio saía frouxo ao ver o ator pregar peças em outras pessoas, e mais ainda quando Ivo apanhava das "vítimas" ao ser descoberto —não à toa, Silvio o chamava de "saco de pancadas do SBT". E assim, uma relação de poder desigual, que envolvia humilhações evidentes para o espectador, era embalada por um combo de simpatia, humor e entretenimento.

Esse poder sem limites de dobrar o público foi confirmado por um episódio surrealmente absurdo: o duplo sequestro que sua família sofreu em 2001. Depois de fazer refém a filha Patrícia e liberá-la mediante resgate, o sequestrador Fernando Pinto fugiu da polícia, voltou à casa de Silvio e o sequestrou.

O Brasil parou nas sete horas em que a vida do apresentador poderia se encerrar de forma violenta. Mas o próprio Silvio, usando da prerrogativa de sua figura e carisma, que negociou sua liberdade junto ao sequestrador. A imagem de Silvio e Patrícia sorridentes na sacada da mansão dos Abravanel, respondendo perguntas e divertindo a imprensa como se tudo não passasse de uma grande pegadinha, diz mais sobre o Brasil cordial e violento do que muita tese de doutorado.

O reality do Silvio

Se havia de um lado o apresentador sorridente e carismático, do outro havia o todo poderoso dono do SBT, de temperamento autoritário e personalista, contratando e demitindo seus outros apresentadores de acordo com seu único e exclusivo gosto.

O mesmo homem que fez a glória de Hebe Camargo como uma das maiores apresentadoras do Brasil se desentendeu com a outrora amiga, fazendo ela terminar sua carreira na Rede TV. Mas ele foi fiel até o fim a Carlos Alberto de Nóbrega (filho de um de seus melhores amigos e ex-sócio, Manuel da Nóbrega) e seu "A Praça é Nossa", herdeiro do humor do rádio. E foi fundamental na transição de Jô Soares de humorista a grande apresentador de talk show com sua contratação em 1988.

Na virada dos anos 90 para os 2000, o dono do SBT fez dois movimentos audazes na programação. Sem nem se preocupar em comprar os direitos das produtoras estrangeiras que inventaram esses formatos, ele estreia primeiro o Show do Milhão, jogo de perguntas e respostas que obtém grande sucesso de audiência em sua primeira versão.

Em 2001, antes de a Globo lançar seu BBB, ele correu e estreou "em segredo" a Casa dos Artistas, reality show que confinava subcelebridades em uma casa. A primeira edição, que deu a vitória a uma ainda desconhecida Bárbara Paz, foi o auge de audiência da emissora, com 47 pontos de audiência e 55 de pico. Dono da bola, Silvio fazia o que lhe dava na telha com seus peões de xadrez, como "devolver" Alexandre Frota pra dentro da casa mesmo após sua eliminação porque o ator estimulava a audiência.

Eterno amigo do poder, Silvio nunca deixou de aliar-se ao presente da vez. Seu quadro "A Semana do Presidente", exibido aos domingos, foi uma constante da ditadura até o governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2002. Talvez não seja mera coincidência que o auge do poder e influência de Silvio como apresentador se encerre com o início do primeiro governo Lula, quando as classes C, D e E tiveram mais acesso aos bens de consumo, e o fortalecimento da internet foi quebrando aos poucos a hegemonia da TV aberta.

É quando um Silvio Santos com mais de 70 anos começava a transparecer com cada vez mais frequência um racismo e um machismo deslocados, em episódios que repercutem até hoje na internet. As gafes foram tantas que fizeram um estrago numa imagem que há 20 anos era praticamente uma unanimidade. Neste momento da sua morte, porém, é impossível negar que a TV brasileira deve muito a ele.

Thiago Stivaletti

Thiago Stivaletti é jornalista e crítico de cinema, TV e streaming. Começou a carreira como repórter na Folha de S. Paulo e foi colunista do portal UOL. Como roteirista, escreveu para o Vídeo Show (Globo) e o TVZ (Multishow).

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