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Rosana Hermann

Cecilia Flesch, a âncora que virou notícia

Jornalista foi demitida da Globonews após falar de sua rotina na Globonews

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O Ibope encerrou seus trabalhos há mais de dois anos, mas continua sendo sinônimo de audiência. As emissoras abertas, por exemplo, lutam para que seus "ibopes" cheguem aos dois dígitos, coisa que em geral só a Globo consegue. Na maioria dos dias, os programas da grade de SBT, Record, RedeTV e Band oscilam entre 0 e 9 e qualquer coisa. Depois da internet, do streaming e de tantas opções de audiovisual, a televisão já não é mais a mesma.

Já as emissoras por assinatura têm números muito menores, exceção feita às transmissões de futebol. Em fevereiro, a TNT registrou a maior audiência da TV paga de 2023, com um Corinthians x Palmeiras que atingiu 6,82 pontos. Mas, no dia a dia, as TVs pagas disputam por números depois da vírgula, porque antes dela, é só zero mesmo.

Há poucas semanas, por exemplo, a Pan comemorou um raro primeiro lugar, porque entre 12h e 18h marcou 0,45 ponto, deixando a Globonews em segundo lugar com 0,37. Nesse mesmo período, a CNN obteve média de 0,21, a Record News, 0,09 ponto e a Band News, 0,02. Sério, gente, 0,02 ponto corresponde a menos de 5.000 pessoas. A live do Manoel Gomes "Caneta Azul" na Bahia, transmitida no mês passado, teve 21 mil views, e isso três anos depois que ele viralizou.

Manoel Gomes durante apresentação
Manoel Gomes 'Caneta Azul' durante apresentação - Divulgação

Qual será, então, a audiência de um jornal na GloboNews, às 6 horas da manhã? Zero vírgula um? Zero? Não sei, só sei que quando a âncora desse jornal vira notícia, a audiência é ela. Foi o que aconteceu com a jornalista Cecilia Flesch, desligada da Globonews depois de quase duas décadas por causa de seus comentários num episódio do mês de abril do podcast "É nóia minha?". E, ao dizer isso, sei que o leitor, a leitora, já espera a minha opinião, se sua demissão foi "justa ou injusta". Mas, já que estamos falando de números, uma dúvida: quantas pessoas ouviram o episódio inteiro, com 51 minutos e 14 segundos, antes de formar uma opinião?

Ou será que muitos opinaram a partir do que leram? Ou seja, a partir da interpretação que as pessoas fizeram do que Cecilia disse no podcast? E isso, supondo-se que todos os que escreveram tenham, de fato, ouvido o podcast na íntegra, porque eu mesma já participei de discussões sobre audiovisuais em que nenhum dos presentes tinha assistido à série em questão, exceto eu. "Ah, mas eu ouvi uns trechinhos", "sim, mas eu opinei porque vi os cortes", "estou acompanhando tudo o que todo mundo está falando". Pois é. Uma pata, duas orelhas e um focinho não fazem um cachorro inteiro nem contextualizam a vida do cãozinho.

Cecilia Flesch no 'Em Ponto' - Daniela Toviansky/Globo

Cecilia participou de uma conversa informal num episódio chamado "Minha rotina é diferente". E contou sua saga de acordar de madrugada para começar a apresentar um jornal ao vivo às 6 da manhã. Tudo o que ela colocou sobre as dificuldades que envolvem essa rotina me pareceu normal e compreensível. Se fosse eu, provavelmente não teria mencionado o apelido "RivoNews", nem teria opinado sobre o conteúdo de política e economia. Mesmo assim, no contexto, pensando no Universo conhecido Sistema Solar -> Planeta Terra -> Brasil -> Globonews -> Jornal às 6 da manhã que dá traço, tudo isso passaria batido. Como passou, de fato, porque aconteceu em abril.

Foi a forma como esse conteúdo foi pinçado e exposto, a forma como essa exposição foi tratada e escandalizada, que culminou em sua demissão. É quase que como botar as mãos na cintura tipo vizinha fofoqueira e cobrar uma atitude da empresa com quase 50 dias de delay: "Mas e aí, Rede Grobo, Bella? Vai me deixar essa âncora no ar depois de tudo isso que ela falou, vai?"

Reitero que, sim, é legítimo comentar qualquer coisa dita num podcast de forma aberta. Liberdade de expressão, de comentário, está tudo certo. Mas, assim como acho que Cecilia poderia ter falado apenas dela e de sua vida, sem falar da empresa, quem divulgou o teor do podcast também poderia ter parado por aí. Para que sair garimpando as mais minúsculas falhas ou gafes de uma pessoa que está diariamente no ar há 18 anos, como se fosse uma ficha policial? Para que forçar um viés de interpretação sobre a jornalista? Já não tem fake news suficiente? Tem que piorar mesmo tudo para ganhar cliques?

Luto para não fazer isso, em busca dos mesmos cliques. Luto para não ser essa pessoa que em nome da lacração passa os limites da compaixão.

Se a gente não se ligar, não tomar consciência, entramos todos nessa armadilha, a de oferecer pessoas em sacrifício em troca de receber algumas migalhas depois da vírgula.

Rosana Hermann

Rosana Hermann é jornalista, roteirista de TV desde 1983 e produtora de conteúdo.

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