Aviso
Este conteúdo é para maiores de 18 anos. Se tem menos de 18 anos, é inapropriado para você. Clique aqui para continuar.

Zapping - Cristina Padiglione
Descrição de chapéu machismo

'Amor Perfeito': autor celebra protagonismo negro que não se obriga a abordar racismo

'Compromisso de falar sempre sobre a nossa sobrevivência empobrece possibilidade criativa', diz Elísio Lopes Jr.

Marê (Camila Queiroz) e Orlando (Diogo Almeida). - Bob Paulino/Globo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

Mais do que avançar na diversidade racial do elenco, a nova novela das seis da Globo, "Amor Perfeito", pretende evoluir na abordagem e no espaço ocupado pelo negro na história do país e nas histórias de ficção que fazem dos folhetins a narrativa de maior alcance no Brasil.

Escrita por dois brancos (Duca Rachid e Júlio Fischer) e um negro (Elísio Lopes Jr.), a trama que estreou há uma semana resgata um momento em que os afrodescendentes tiveram uma representatividade muito maior que hoje na elite social do país, extrato que foi sufocado por políticas eugenistas alimentadas por aqui.

Para além disso, a novela convida o espectador a olhar para o protagonismo negro com expectativas similares às que sempre motivaram a audiência de tantas e tantas novelas encabeçadas por personagens brancos, ou seja: com dores, alegrias, frustrações ou celebrações cabíveis em qualquer lugar comum, sem mais aquela percepção de que todo enredo com a presença de negros só acontece em função do combate ao racismo.

"Um ponto importante, para nós, criadores pretos, é dizer que o compromisso de falar sempre sobre a nossa sobrevivência é um compromisso que empobrece a nossa possibilidade criativa", disse Elísio à coluna, em conversa durante a apresentação da cidade cenográfica da novela a jornalistas, no Rio.

"Poder escrever uma novela sobre amor, pra mim, é libertador. Porque eu, como preto, posso expressar esses sentimentos, independentemente do olhar do outro, que por algum motivo discrimine a minha existência."

Para Elísio, "ocupar esse lugar é revolucionário". "É isso que a novela traz. Desde a abertura, a gente está espalhado e é a cara do Brasil. Ali estão todas as cores, todas as idades, e é isso é que é bonito: eu posso beijar na boca na televisão, esse é o objetivo dessa novela. A novela traz isso: nos vejam felizes, bem vestidos, bons ou maus, e lembrem que isso é o Brasil."

Os autores de 'Amor Perfeito', Júlio Fisher, Duca Rachid e Elisio Lopes Jr. sentados na escada do hotel cenográfico da novela da Globo - Paulo Belote/Globo

"No processo de escrever a novela", contou Fischer, "a gente foi pesquisando, e o Elisio foi trazendo para a gente um material que mostrava que aquele Brasil que a gente estava imaginando para fazer uma novela com 50% de personagens negros, em posição de não subalternidade, era um Brasil que existiu, um Brasil que foi real", reforçou o autor.

Mas essa é apenas a moldura do enredo. "Importante dizer que a novela não é sobre isso", alertou Elísio, reforçando que a proposta é contar uma história de amor, como cabe a um bom folhetim.

De toda forma, essa narrativa está inserida no contexto desse Brasil apresentado pelos autores e na construção de seus personagens, a começar por um protagonista negro formado em medicina, com estudos complementados fora do país em uma época em que as políticas públicas de educação eram praticamente nulas --embora a escola pública fosse bem melhor. Mas estudar fora do país era privilégio para muito poucos.

Para reconstruir o contexto real dessa nação, Duca, Fischer e Elísio elaboraram um estudo parrudo, endossado por informações de livros, documentários, fotos, artigos de jornal e toda documentação capaz de mostrar que o universo onde se passa "Amor Perfeito" é um Brasil não de mentirinha, mas que, guardadas as devidas proporções da fantasia que cabe à ficção, existiu de fato.

"Era importante compartilhar esse estudo nosso com o elenco e toda a técnica, porque isso fundamenta a história que a gente está contando, a gente está falando de um Brasil que sempre existiu e que ficou escondido", afirmou Duca. "E a gente não tem só casais inter-raciais, a gente tem casais pretos, que são felizes e curtem a sua vida."

Os autores conversaram com a coluna durante a apresentação da cidade cenográfica e do elenco nos Estúdios Globo, antes chamados como Projac, em Curicica, no Rio de Janeiro.

A tentativa de trazer uma representação do Brasil real também se expressa na coloração da cenografia. "A gente buscou referências muito brasileiras: Heitor dos Prazeres, Tarsila do Amaral, a cidade é toda colorida, ela reproduz um pouco as cidades do interior, que têm essa característica", observou a autora.

A novela é livremente inspirada no romance "Marcelino Pão e Vinho", que teve uma primeira versão em filme contextualizado pela revolução mexicana, e uma segunda, que se passa na época da Guerra Civil Espanhola.

Em "Amor Perfeito", a personagem materna parte do zero na criação dos autores, e a narrativa é localizada em uma fictícia cidade do interior de Minas Gerais entre 1934, que se resume a uma breve iniciação da história a ser contada, e se concentra em 1942, antes da entrada do Brasil na Segunda Guerra.

"A gente tentou dar esse caráter brasileiro a essa história", seguiu Duca. "O 'Marcelino' é só uma inspiração".

Outro ponto importante na construção da trama é abordar as questões sociais com a verossimilhança da época, mas sob o olhar de hoje. Elementos capazes de provocar reflexão sobre machismo e violência doméstica estão na linha de frente das temáticas miradas pelos autores.

"Infelizmente, alguns problemas que a gente tinha no Brasil e no mundo lá, ainda persistem aqui", lembrou Elísio. "Uma pesquisa que acabou de sair diz que a cada 6 minutos uma mulher é assassinada no Brasil. E a gente está falando de um Brasil de 1942, baseado nessa posse do marido pela mulher."

Duca citou ainda a questão da ausência paterna e as relações entre pais e filhos em um tempo em que a educação ficava quase que exclusivamente a cargo da mulher.

Empreendedorismo e cultura são outros assuntos da trama, que reserva para mais adiante a chegada de Antônio Pitanga ao elenco, com um personagem tratado com certo suspense, de quem se espera uma boa carga do que os autores chamam de "caldeirão de cultura e coisas bonitas".

A trilha sonora que já deu o tom no primeiro capítulo sublinha o empenho de retratar uma outra época sem perder o olhar atual. "A Queda", canção de Glória Groove, ganhou uma releitura com arranjo de orquestra, levando um hit atual à moda dos anos 1940. É um recurso que pode também ser observado na série "Bridgerton" (Netflix), aliás, adepta dos chamados "color blind-casting", também tratados como casts daltônicos, em que a etnia ou raça do ator não tem peso algum sobre a história a ser contada.

A colunista viajou ao Rio a convite da TV Globo

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem