'Pantanal' chega ao fim vitoriosa na atualização de temáticas sociais
Releitura da novela resgatou audiência e sanou defasagens de 32 anos atrás sobre machismo, meio ambiente e racismo
A três semanas do encerramento da saga dos Leôncios, com apenas 18 capítulos a serem exibidos, a Globo pode celebrar o êxito em ter reconhecido e corrigido um erro de 32 anos atrás, quando a então diretoria da emissora negou ao autor Benedito Ruy Barbosa a realização de sua novela, originalmente batizada como "Amor Pantaneiro".
"Pantanal" terá seu último capítulo exibido em 7 de outubro.
Além de resgatar a audiência para o patamar dos 30 pontos na Grande São Paulo, o remake arrastou para a frente da TV uma nova fatia de jovens e atualizou discussões úteis sobre machismo, meio ambiente e racismo, só para mencionar três questões que permearam a releitura da obra por Bruno Luperi, neto de Ruy Barbosa.
Embora a espinha dorsal da história tem sido muito fiel à versão original, Luperi fez muitas alterações pontuais, diálogo por diálogo, a fim de atender às transformações operadas ao longo de 32 anos na pauta de costumes e nas questões ambientais, claro, já que o Pantanal, no caso, é praticamente um personagem da trama.
Entre os elementos que sofreram mudança significativa em relação à narrativa vista pela extinta Rede Manchete, uma ainda está para acontecer nesses capítulos finais e diz respeito à tão comentada castração de Alcides por Tenório, violência que agora será consumada como um estupro.
Se em 1990 o então personagem de Antonio Petrin mostrava sangue nas mãos após ferir o peão vivido por Angelo Antônio na frente de Maria, interpretada na ocasião por Angela Leal, dessa vez o vilão de Murilo Benício se trancará com sua vítima, papel de Juliano Cazarré, num quartinho, sem que a ex-mulher do grileiro, na pele de Isabel Teixeira, tenha condições de entender o motivo dos gritos de seu companheiro.
A sequência tampouco será explícita aos olhos do público, que concluirá se tratar de um estupro pela sequência de urros emitidos pelo peão. Tenório chega a dizer que vai capar Alcides, mas depois fala que decidiu lhe fazer algo "muito pior". Ao encerrar a tortura, o ex-patrão repetirá que ele não é mais homem, enquanto Alcides dirá que preferiria ter morrido.
A situação arrefece a violência sugerida no roteiro original, lembrando que Ruy Barbosa também não bancou, em 1990, a sugerida castração, até em razão de ter percebido que o público estaria muito chocado com aquela escolha.
Uma mutilação levaria o peão direto para um socorro clínico, e não foi isso que ocorreu na ocasião, quando Alcides e Maria voltavam direto para a fazenda de José Leôncio, assim como farão na versão atual, inventando uma desculpa para o sumiço do casal, a pedido do peão, que está envergonhado pela violência sofrida.
Não à toa, Alcides vai se aproximar de Zaquieu (Silvero Pereira), tendo a chance de perceber que ter sido penetrado por outro homem não faz dele mais ou menos macho. É a coroação de um desfecho que chegou ao extremo.
O estupro representa o ápice da desconstrução de dois personagens com equivocados valores sobre masculinidade.
Para além de Alices e Tenório, o remake reforçou as tintas sobre machismo, misoginia e feminismo ao longo de toda a novela, também por meio de Bruaca e Zuleica (Aline Borges).
Fora desse núcleo de ações que beiram as piores consequências, o preconceito de gênero esteve em discussão de modo mais próximo do espectador comum graças ao seu protagonista, José Leôncio (Marcos Palmeira). Apresentado como herói da história, ele é infestado de um conservadorismo típico da maioria dos brasileiros, tendo a chance de se transformar e frear antigas ideias graças aos discursos da companheira Filó (Dira Paes) e do filho Jove (Jesuíta Barbosa).
Assim como trabalhou a figura do herói falível de modo mais intenso que a versão original, Luperi também reforçou as tintas sobre o desastre ambiental, algo que estava muito e muito distante do cenário atual há 32 anos, quando as cenas mostram uma infinidade de águas agora ausentes daquela mesma região.
O discurso sobre meio ambiente teve o mérito de circular fora das bolhas conservadoras ou progressistas ao dar razão tanto aos questionamentos do jovem Jove como aos conceitos de Zé Leôncio. Pai e filho divergiam dentro de um espectro de boas intenções sublinhado pelo antagonismo do grileiro Tenório.
Em 1990, o bom mocismo de um se opunha ao mau caratismo do outro só pela ideia de que um fazia bom uso da terra, com criação de gado e preservação ambiental, enquanto o outro desprezava a propriedade como foco de produção. Dessa vez, como bem sublinhou Luperi antes da estreia, não bastava apenas se mostrar um bom empresário do agronegócio, mas provar que sua atividade era sustentável para o meio ambiente.
Outro fator que fugiu do espectro do original foi a questão do racismo, tema completamente ausente da saga de 1990, quando Zuleika era uma atriz branca, no caso, Rosamaria Murtinho. A escolha por uma família negra como segundo clã de Tenório foi um meio de mostrá-lo envergonhado pela cor dos filhos, trazendo à tona um assunto pouco debatido até bem pouco tempo atrás.
A discussão, que poderia até ter sido mais bem explorada, entrou em cena pontualmente, por meio dos herdeiros que se sentiam rejeitados.
Pelo conjunto da obra, o remake de "Pantanal" representa um golaço da Globo em todos os aspectos, calando inclusive aqueles que consideravam impossível alcançar um resultado superior ao de 1990, quando a Manchete abalou a audiência da Globo e provocou uma revisão de premissas no audiovisual da TV.
De quebra, a "Pantanal" da nova era ainda teve merchandising social de alfabetização, levando Jove a ensinar sua Juma (Alanis Guillen) a ler e a escrever, e alimentou o caixa da emissora de um bom faturamento com merchandising de segmentos diversos, indo dos cosméticos à fibra ótica e à cerveja.
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