Bom de Garfo

Cultura de botequim em Juiz de Fora é marcada por delícias da culinária mineira e malemolência carioca

Porções são feitas com esmero, como a clássica fígado com jiló

 O famoso fígado com jiló de Abílio, que rendeu o título do concurso “Comida di Buteco” à casa, em 2011
O famoso fígado com jiló de Abílio, que rendeu o título do concurso “Comida di Buteco” à casa, em 2011 - Otavio Valle/Folhapress
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Juiz de Fora entrou no radar do noticiário nacional depois do incidente que envolveu o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), durante a campanha eleitoral. Mas a terra natal dos escritores Pedro Nava e Rubem Fonseca merece holofotes por motivos alegres como, por exemplo, sua tradição em botequins e a ótima gastronomia popular. 

Graças aos 182 km de distância que separam a cidade do Rio de Janeiro, a cultura de botequins juiz-forana não apresenta apenas traços da mineirice, mas carrega uma forte influência da malemolência dos botecos cariocas.

Há anos frequento o município. Nunca abri mão de explorar as preciosidades da culinária mineira e curtir o jocoso clima entre clientes e donos de boteco. Estive flanando por lá no último feriadão e achei justo compartilhar duas pérolas da região: o tradicionalíssimo Bar do Abílio, e o jovem Petisqueira. Duas casas simples que mostram como é possível mesclar tradição e modernidade.

Em janeiro de 1969, o jovem Abílio Moreira abriu um botequim na estreita Fonseca Hermes, no centro de Juiz de Fora. Com apenas 24 anos de idade, vindo da vizinha Piau, Abílio jamais imaginaria que seu estabelecimento se tornaria um verdadeiro patrimônio da cidade.

No bar, o velho piso de azulejo hidráulico é testemunha de gerações inteiras de clientes que passaram pela casa. "Amigos se foram, mas hoje vêm aqui seus filhos, netos. É uma grande família”, conta ele, com ar sereno.

O Bar do Abílio resiste no mesmo endereço há 50 anos. Na pequena rua, que abriga toda sorte de comércios, prédios no estilo art déco duelam contra o tempo e remontam os áureos tempos da indústria da tecelagem, que renderam a Juiz de Fora o apelido de “Manchester Mineira”.

No alto de seus 73 anos, Abílio esbanja saúde. “Tô conservado porque gosto de tomar uma pinguinha. Por isso estou firme”, diz com alegria. A filha Tânia ajuda no comando da casa, mas quem pilota a cozinha é Abílio, que nunca larga o fogão.

Todas as porções são feitas com muito esmero, como a clássica Fígado com jiló (R$ 16 meia/ R$ 25 inteira), que já rendeu prêmios à casa. Em apenas cinco minutos, ele prepara o prato. Primeiro, dá uma fritada no fígado, que já está temperado. Reserva o danado. Em seguida, refoga o jiló, adiciona anéis de cebola, e logo acrescenta o fígado: mais um cliente feliz!

A cinco quilômetros de distância do centro está a Petisqueira. Aberto apenas em fevereiro deste ano, o botequim é resultado do sonho do casal Walquíria Cruz e Roberto Freitas. Ela é cozinheira há mais de 20 anos. Começou trabalhando em casa de família, ainda adolescente.

“No meu primeiro emprego, o patrão mandou eu preparar uma picanha, mas eu tirei toda a gordura da peça. Felizmente, ele não me demitiu, e me ensinou toda a base da cozinha”, relata a chefe. 

Walquíria se formou em gastronomia, trabalhou nos melhores restaurantes da cidade, e hoje é pós-graduada na área. Roberto é motorista, e assíduo frequentador de botecos ao fim do expediente. Conhecedor do talento da namorada, não titubeou em aceitar a parceria.

Em pouco minutos de conversa com Walquíria é possível perceber o quanto ela é apaixonada pela cozinha. Essa paixão fica mais evidente quando se come algum dos seus pratos. Fiquei impressionado com seu bolinho de aipim com queijo canastra (R$ 28/10 unidades).

A massa de mandioca é inigualável, uma das melhores que já comi na vida, e o tempero é exato. A porção é servida com um molho de melaço de cana, que harmoniza com o canastra. O jiló empanado (R$ 18), obrigatório nos botequins de Juiz de Fora, é cortado em lâminas finas, muito crocante e bem servido. Não posso esquecer do disputado “chouriço” (R$ 25), que sai apenas no fim de semana.

Mas precisamos falar sobre torresmo. A iguaria é uma verdadeira instituição municipal. Todo o cuidado é pouco com o tema. Mas mesmo assim, não tenho medo em afirmar que o “torresmo da casa”, produzido pela cozinha da Petisqueira, deve ser hoje um dos melhores da cidade.

Walquíria mantém a tradição juiz-forana, com um tempero caseiro. Cada toucinho é cuidadosamente cortado e frito. Sem carregação. A diferença não fica apenas no sabor, mas no acabamento do torresmo, na crocância perfeita da pururuca. Um delicioso molho de jabuticaba acompanha a porção. Não bastasse essa maravilha culinária, a casa oferece o obsceno “rocambole de torresmo” (R$ 50).

É uma manta de toucinho, de corte selecionado, enrolada com queijo coalho, e frita. Você pode escolher mandioca frita ou cozida como guarnição. O resultado é arrebatador. A carne macia, quase desmanchando na boca, contrasta com a pururuca, que envolve o rocambole. Um sonho para os amantes da carne porco.

Só esse prato justifica sozinho o perrengue das sete horas de viagem entre São Paulo e Juiz de Fora no busão. Por isso, me permito concluir o texto com um trocadilho daqueles: Juiz de Fora, tô dentro!

Bar do Abílio

  • Quando De seg. a sex., das 10h às 23h; sáb., das 10h às 18h. Fecha aos domingos e feriados.
  • Onde R. Fonseca Hermes, 180, Juiz de Fora (MG)
  • Tel. (32) 3215-6216

Petisqueira

  • Quando De seg. a sex., das 17h às 23h; sáb., das 11h às 23h; dom., das 10h às 18h. Fecha às terças.
  • Onde Av. Eugênio do Nascimento, 475, Juiz de Fora (MG)
  • Tel. (32) 3029-1819

Bom de Garfo

Otavio Valle, 48, é formado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) e pós-graduado em fotografia pelo Senac, mas a vida de jornalista o fez especialista em "botecologia", pela universidade "Bares da Vida".

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