Aviso
Este conteúdo é para maiores de 18 anos. Se tem menos de 18 anos, é inapropriado para você. Clique aqui para continuar.

Cinema e Séries
Descrição de chapéu
The New York Times Filmes

Entenda por que 'M3GAN', filme sobre uma boneca assassina, virou a nova obsessão gay

Obra é um progresso para o gênero de terror, que tem histórico vergonhoso com os LGBTQIA+

Cena do filme 'M3gan' - Divulgação
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Erik Piepenburg
The New York Times

Quando "M3GAN", o filme sobre uma robô assassina, estreou neste mês, faturando US$ 30,2 milhões nas bilheterias (mais de R$ 153 milhões), logo atrás de "Avatar: O Caminho da Água", isso foi muito importante. Para os filmes de terror, que continuam a flexionar sua musculatura nas bilheterias; para o estúdio Universal, que distribui o filme e já planeja uma sequência; e para Gerard Johnstone, um cineasta pouco conhecido que transformou a oportunidade criada pelo filme em um contrato para uma franquia.

"M3GAN" também representa uma vitória para os filmes gays. E, sim, "M3GAN" é um filme gay, ou, mais precisamente, um filme com uma sensibilidade fundamentalmente gay —o filme de horror não gay com mais elementos gays a se tornar sucesso de bilheteria desde que "O Babadook" se tornou uma espécie de mascote subversivo do movimento Gay Pride, seis anos atrás.

É bom deixar claro que não há nada de explosivamente gay no filme, embora o final seja explosivo. A história é essencialmente um alerta sobre a inteligência artificial: Gemma (Allison Williams), uma engenheira robótica, usa sua sobrinha órfã, Cady (Violet McGraw), como parceira de teste para um protótipo de robô chamado M3GAN, uma abreviatura de Model 3 Generative Android.

Inicialmente, M3GAN estabelece uma relação com Cady, ouvindo suas preocupações e aprendendo com ela uma dança no estilo TikTok. Mas, como qualquer fã de filmes de terror será capaz de lhe dizer, em todos os filmes do gênero, de "Frankenstein" a "Frankenhooker", uma reviravolta sombria está à espera, sempre que malucos que gostam de fingir que são Deus adulteram o que significa ser humano ao criar vidas que se tornam monstruosas. Assim, em uma espécie de mistura alucinada de "Ex Machina: Instinto Artificial" e "Annabelle", M3GAN altera o próprio código, se volta contra sua criadora e desembesta em uma onda de matanças. Viu? Nada gay.

Mas não sou a única pessoa que acha que há algo de "queer" em "M3GAN". Artigos no The Daily Beast e no jornal The Philadelphia Inquirer classificaram o filme como "ícone queer". Them, uma publicação "queer", definiu "M3GAN" como "a nova obsessão de terror da internet gay". Um espectador tuitou sobre o filme dizendo que "depois que o assistimos em um cinema cheio de gente queer, concordamos em que aquele filme era para nós".

Como diretor de fotografia de "The Boulet Brothers' Dragula", um reality show sobre drag queens que se caracterizam como personagens de terror no serviço de streaming Shudder, e como homem gay, Brent Bailey conhece bem a intersecção entre o "queer" e o assustador. Ele também acha que "M3GAN" é gay, e que são mulheres heterossexuais que criam o robô dessa maneira.

"Nós, gays, amamos ver uma mulher no comando, e os três personagens principais do filme são mulheres", disse Bailey, que viu o filme em Los Angeles. "Os homens homossexuais sempre adoraram filmes sobre relações femininas."

Ele mencionou como exemplos "Thelma & Louise" mas também "Linda de Morrer" (1999), um falso documentário de humor negro sobre concursos de beleza, acrescentando que "apesar de não serem especificamente gays, estes são filmes sobre mulheres fortes. ‘M3GAN’ é o melhor exemplo disso em algum tempo".

Em uma entrevista por vídeo, da Nova Zelândia, seu país de origem, Johnstone disse que fazia ideia de que os fãs "queer" fossem gostar de "M3GAN". Ele disse que os espectadores LGBTQ apoiaram seus dois projetos anteriores, ambos com personagens femininas imperfeitas nos papéis centrais: "The Jaquie Brown Diaries", uma comédia televisiva de 2008 sobre uma aspirante a repórter de celebridades, e "Housebound", comédia de terror que ele dirigiu em 2014 sobre uma jovem que combate as forças do mal enquanto está sob prisão domiciliar.

"Tive um apoio espetacular dos gays em minha curta carreira", disse Johnstone, que é heterossexual, casado e tem filhos. "É extremamente gratificante."

Ele disse que estava "despreparado para o grau de apoio" que "M3GAN" recebeu do público LGBTQ, mesmo que ele não saiba, ou não queira adivinhar, o motivo. "Como uma pessoa não gay, tento não fazer suposições sobre os motivos para que uma pessoa gay goste do filme", ele disse.

Eu explico o motivo a ele: porque os homens homossexuais protegem mulheres como M3GAN, belas e leais, mas confusas e insolentes (no gênero do terror, onde o horrível é maravilhoso, é uma obrigação combinar uma bela aparência e depravação). Consideramos as nossas M3GANs como parte da família, e estamos dispostos a brigar com todo mundo que olhe torto para elas.

A fim de encontrar as raízes gays de "M3GAN", é preciso recuar o calendário até outubro, quando a Universal lançou o primeiro trailer do filme. Uma tempestade gay perfeita ajudou a torná-lo sucesso viral: era o National Coming Out Day [dia nacional de sair do armário] e o mês do Halloween. A cantora Megan Thee Stallion, ídolo dos gays, tuitou sobre o filme. E –no meu caso foi esse o fator decisivo— o trailer mostrava um fragmento da sinistra e desajeitada dança de M3GAN, ao som de um remix de "It's Nice to Have a Friend", de Taylor Swift, uma canção que nem mesmo faz parte da trilha sonora do filme.

Williams disse ao The Hollywood Reporter que a cena de dança quase não entrou na edição final do trailer, mas "as forças de marketing da Universal estavam certas ao mantê-la". Aposto minha camiseta da turnê "Like a Virgin" que um homem gay no departamento de marketing da Universal conhece uma menina que dança daquele jeito e disse: mantenham a cena. Podem confiar em mim.

O lado gay do trailer talvez não fosse muito aparente. Minha mãe não perceberia. Mas, para mim, ele está presente, especialmente quando M3GAN entra numa sala e tira deliberadamente os óculos escuros, como se fosse Miranda Priestly [a chefe intratável de "O Diabo Veste Prada"] contemplando seus subalternos apavorados. E eis o ponto: M3GAN não precisa de óculos de sol. Ela é uma boneca. Só os usa para dramatizar, e isso, como disse Bailey, é "inerentemente gay".

E reparem no que M3GAN veste: um vestido com pregas invertidas, acompanhado por uma gravata e um um top beatnik listrado e de mangas compridas. Ela está atendendo Amanda Seyfried, que aguarda descontente o começo de um desfile da Rodarte. Uma escolha de figurino tão elegante para uma vilã tão demente não aparece frequentemente nos filmes de terror.

A mistura de "mod" e alta costura deve ser creditada ao figurinista Daniel Cruden, mas a altivez de M3GAN é responsabilidade da roteirista Akela Cooper, que tem jeito para o melodrama. O seu roteiro para "Maligno" combina a série "Knots Landing", dos anos70, a um lado grotesco; o de "M3GAN" mistura "Super Vicky" e alta crueldade.

Para obter outra perspectiva, contatei Joe Vallese, o editor de "It Came From the Closet", uma nova antologia de ensaios sobre o terror "queer". Ele disse que aquilo que atrai os olhos gays em "M3GAN" envolve mais do que a expressão ríspida da personagem; o caso é que, no terror, as personagens femininas são geralmente ou garotas corretas e finais ou antagonistas distorcidas, mas M3GAn existe em algum espaço entre esses dois extremos. É nessa dualidade —irmã mais velha e carniceira— que muitos homens gays veem um parentesco, e uma aspiração.

"Os homens homossexuais têm sido historicamente vistos como menos válidos, e mais fracos, mental e fisicamente, e sabemos que isso nunca foi verdade", disse Vallese. "É quase uma bênção ser uma M3GAN, ser desconsiderada como uma coisinha inócua quando na realidade essa confusão de sentido permite a ela ser poderosa e destrutiva."

É interessante comparar a adesão dos espectadores LGBTQ a "M3GAN" e sua resposta relativamente tépida ao filme "Mais que Amigos", um trabalho inquestionavelmente gay. "Mais que Amigos" foi considerado uma bomba e, por mais que eu deteste dizer isso, em minha condição de fã veterano dos filmes gays, concordo com a definição. O marketing tinha algo de desesperado, e me lembrou o momento, em 1997, em que fui assistir a "Kiss Me, Guido" no fim de semana de estreia porque me senti obrigado a deixar claro que os gays estavam dispostos a gastar dinheiro para assistir a filmes gays.

De lá para cá, vi toneladas de filmes sobre personagens gays gostosos mas inseguros em busca de amor, mas nunca vi um filme de terror que fosse gay da maneira que "M3GAN" é: repleto de estilo, antenado, cortante. Ver o trailer de "Mais que Amigos" me deixou orgulhoso. Ver o trailer de "M3GAN" me fez querer assistir ao filme.

Por que é importante que "M3GAN" seja gay? Porque me lembro de 2003, quando a personagem de Kelly Rowland em "Freddy vs. Jason" usou um epíteto gay para insultar Freddy Kruger, e minha sensação foi a de ter sofrido "bullying" no recreio, em meio aos aplausos que ecoavam no cinema.

O terror tem um passado vergonhoso quando o assunto são pessoas "queer", e por isso, sim, vou celebrar que uma "cadela androide feroz", a definição de Bailey para M3GAN, se torne parte da família eletiva de uma menina.

Deixando de lado a matança, eu gostaria de tê-la em minha família.

Tradução de Paulo Migliacci

Final do conteúdo
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Ver todos os comentários Comentar esta reportagem