Beavis e Butt-Head, sucesso nos anos 1990, voltam com inéditos no streaming
Criador e dublador Mike Judge diz que 'live-action' da dupla pode sair do papel
Criador e dublador Mike Judge diz que 'live-action' da dupla pode sair do papel
Há certos sons que evocarão para sempre a década de 90 em nossa memória sensorial coletiva. O riff de abertura da guitarra em "Smells Like Teen Spirit", do Nirvana. O ruído de um modem discado ao estabelecer conexão com a internet. O risinho persistente e irritante de Beavis e Butt-Head.
Os dois cabeçudos largadões se tornaram parte onipresente daquela década, e o que os levou à fama foi a série "Beavis and Butt-Head", da MTV. Na série de animação, os dois amigos eternamente desavisados vagueavam pelas ruas de sua cidade suburbana, causavam estragos na escola e assistiam a vídeos de música na TV, acompanhados por uma onda ininterrupta de comentários zombeteiros e depreciativos (pontuados por sua risadinha característica).
"Beavis e Butt-Head" foi criado por Mike Judge, um artista de animação na época pouco conhecido (com formação em matemática, física e engenharia). A série, na qual ele fazia as vozes dos personagens principais e muitas outras, estreou em 1993, e mais tarde resultou em um filme de sucesso, "Beavis e Butt-Head Detonam a América" (1996). Mas o ritmo incansável do trabalho de produção fez com que Judge se queimasse; a encarnação original da série terminou em 1997, e ele partiu para a criação de outros programas de TV, como "O Rei do Pedaço", e de filmes, entre os quais "Como Enlouquecer Seu Chefe".
Agora, depois de um longo hiato (e de uma breve retomada que durou apenas uma temporada, em 2011), Judge recriou "Beavis and Butt-Head". Os personagens retornaram no filme "Beavis e Butt-Head Detonam o Universo", que foi lançado em junho pelo serviço de streaming Paramount+. E novos episódios da série de TV foram lançados nesta semana, alguns dos quais levam a dupla de volta ao já conhecido ambiente da adolescência enquanto outros mostram suas vidas como panacas mais velhos (mas nem um pouco mais sábios).
Embora tenha experimentado os sentimentos mais diversos com relação a "Beavis and Butt-Head" ao longo dos anos, Judge, 59, hoje os vê como eternamente divertidos, e resilientes. "Os melhores episódios são aqueles em que você simplesmente diz qual é a situação e as pessoas já começam a rir", disse Judge em uma entrevista por vídeo no mês passado. "Nos melhores, dá para explicar a trama em duas ou três frases. O que a gente quer é encontrar oportunidades para que os personagens sejam engraçados."
Judge falou sobre como era cansativo fazer o "Beavis and Butt-Head" original, sobre retomar a série e sobre futuros planos para os personagens. (Alguém aí está à espera um filme "live-action" de Beavis e Butt-Head?)
Abaixo, trechos editados de nossa conversa.
"Beavis and Butt-Head" parecia ser uma série que poderia ter continuado perpetuamente. Por que você decidiu parar a produção original?
Às vezes me faço essa pergunta. Era uma relação um pouco tensa com a MTV, e estávamos fazendo muitos episódios, rápido demais. As coisas começaram a melhorar quando estávamos mais perto do fim. Mas quando estávamos negociando para fazer o filme, eu ainda tinha uma temporada inteira da série no meu contrato, e disse que faria o filme se eles me dispensassem de fazer a temporada final. Talvez se tivéssemos trabalhado em um ritmo mais lento, em vez de fazer 70 episódios por ano, fosse possível que eu tivesse continuado por muito tempo. Eu preferi desistir do programa antes que ele ficasse ruim demais, e que afundasse de vez. E acho que foi exatamente isso que eu consegui, o que justifica que eu retorne agora.
Sua apreciação por Beavis e Butt-Head como personagens foi afetada pelos maus sentimentos que o final da série deixou?
Eu com certeza fiquei sentindo um gosto ruim na boca por algum tempo, depois que a série acabou. Fiquei feliz por ela ter terminado. Eu estava fazendo "O Rei do Pedaço", mas, especialmente depois de dirigir "Como Enlouquecer Seu Chefe", houve um período em que, de vez em quando, eu via um clipe ou algo assim e pensava, uau, aqueles dois personagens eram muito bons, eles brilham na tela. Quando a série funcionava, funcionava muito bem, em minha opinião. Eu estava planejando fazer uma continuação do filme, por volta de 2001 ou 2002.
Como teria sido essa continuação?
Eu tinha um par de ideias diferentes. Uma delas serviu mais ou menos como ponto de partida para o que temos agora, com o acampamento de astronautas. Mas eu tinha outra, sobre alguém que tentava recrutá-los para uma missão suicida prometendo 72 virgens como recompensa. Felizmente, não segui com essa.
Felizmente, de fato. O que o convenceu a voltar a "Beavis and Butt-Head" agora?
Eu tinha acabado "Silicon Valley", e surgiu outra série que estava para acontecer, mas terminou não rolando. Dois ou três anos atrás, fiz uma pequena introdução com Beavis e Butt-Head para um show da banda Portugal. The Man no festival Coachella, e eles a usaram em sua turnê. Eu não fazia aquelas vozes há muitos anos, e pensei que, uau, as vozes continuam funcionando, e que voltar a fazê-las talvez fosse divertido. Originalmente, ia ser apenas um filme, talvez um filme "live-action", mas em seguida eles disseram que também queriam a série.
Calma lá, você disse filme "live-action"?
Sim, um "Beavis and Butt-Head" em formato "live-action" para a Paramount, que ainda pode acontecer. A certa altura, havia uma ideia de Beavis e Butt-Head como personagens de animação em um mundo "live-action". Seguimos esse caminho por algum tempo. E começamos um processo de seleção de elenco, uns dois anos atrás, para escolher atores que interpretassem as versões adolescentes de Beavis e Butt-Head.
Você poderia tentar algo no estilo "Boyhood - Da Infância à Juventude", e acompanhá-los a cada ano por 10 ou 12 anos.
Oh, com certeza, isso poderia funcionar. Totalmente.
Você estava preocupado com a possibilidade de que o que quer que Beavis e Butt-Head tenham capturado na década de 1990 não se traduzisse bem para a década de 2020?
Quando a série começou, a MTV era um produto jovem, que estava sempre batalhando para ser "hip", e me lembro de pensar que não ia tentar fazer com que aqueles personagens fossem "hip". Pauly Shore era o cara mais cultuado na MTV, e tinha um monte de expressões "hip" da Califórnia em seu vocabulário, e eu me esforçava muito para que os personagens não tivessem bordões. Tinha gente que comentava que eles usavam camisetas do AC/DC e Metallica, e que seria melhor se fossem camisetas do Nirvana, Pearl Jam ou algo mais novo. Mas eu não queria nem tentar competir com aquilo.
Você acha que essa filosofia continua a ajudar nos novos episódios?
É divertido fazer os episódios em que eles estão na meia-idade. Quando eu era adolescente, saiu o filme "Clube dos Pilantras" e Rodney Dangerfield era muito popular. Ele tinha quase 60 anos. Não estava tentando ser jovem ou "hip" –era só um velhote engraçadinho, e há algo em Beavis e Butt-Head de que eu realmente gosto, e é bem parecido. Eles são dois velhos burros.
Há episódios deles como adultos?
Sim, em um deles os dois são convocados como jurados, e eles são com certeza os piores jurados de todos os tempos. Também trazemos de volta Stewart [um garoto mais jovem que idolatrava os dois], agora como um sujeito de meia-idade, porque ele doa um rim a Beavis. Esse é um dos meus favoritos, entre os episódios de "Beavis and Butt-Head" que já fiz.
O cinismo implacável deles chega a cansar, depois desses anos todos?
Parte da questão é que eles são claramente dois caras inúteis que simplesmente desprezam todas as realizações dos outros, e não têm nada de bom acontecendo em suas vidas. Mas há algo de engraçado em os dois se colocarem acima tudo que os cerca. Às vezes estou totalmente de acordo com o que eles têm a dizer, e às vezes a graça da coisa está em dizer algo de que discordo completamente.
Você teve que encontrar as vozes deles de novo, ou elas residem permanentemente em você?
Demorou um pouco. Fazer Beavis não é bom para a minha voz. Provavelmente tenho pólipos ou algo parecido, por causa isso. Ele grita muito [Judge rosna o barulho característico de Beavis]. Consumo muitas pastilhas contra a tosse e muito chá com mel, por causa dele.
Beavis e Butt-Head agora discorrem sobre vídeos do TikTok e outros comentários de mídia social que parecem descender diretamente do programa original. Você se considera como o inventor do vídeo de reação?
Bem, você é que está dizendo. Para ser justo, "Mystery Science Theater 3000" veio antes de "Beavis and Butt-Head". Julie Brown também tinha um programa na MTV ["Just Say Julie"] onde ela passava um vídeo, se sentava em uma cadeirinha armável e comentava o que estava acontecendo na tela. A MTV inicialmente queria que Beavis e Butt-Head fossem VJs, e eu achava que não faria sentido colocá-los falando para a câmera. Mas e se os dois só assistissem a vídeos, e conversassem enquanto isso? A ideia funcionou bem demais.
Agora que a série está em uma plataforma de streaming, você já pensou na ideia de usar linguagem ou conteúdo mais explícito?
Falamos sobre isso, no início. Para começar, isso não se pareceria muito com eles; seria menos inocente. E também há algo de engraçado em eles usarem expressões idiotas como "butt wagon". Eles são muito, muito burros, e me lembram das pessoas que eu conhecia no começo do segundo grau. Não acho que haja muita gente pensando coisas como "oh, mal posso esperar para que Beavis e Butt-Head digam [palavrão]".
Houve um grupo de discussão que a MTV organizou na década de 1990. O moderador perguntou o que as pessoas queriam ver em "Beavis and Butt-Head". E havia um cara lá que claramente estava com raiva, e ele disse que queria vê-los embarcar no primeiro avião para o México, ir a um bar de strip-tease, encher a cara. "Alguma coisa criativa, sabe?" E eu lá, parado, em pé, pensando que nenhuma daquelas ideias tinha qualquer coisa de engraçado, na verdade. Às vezes, o que as pessoas acham que querem não é o que elas querem.
Já faz quase 30 anos desde a controvérsia que surgiu quando "Beavis and Butt-Head" foi acusado de causar a morte de uma criança pequena em um incêndio, o que resultou em o conteúdo do programa ser alterado como resultado. Como você se sente com relação a isso, hoje?
Parece ainda mais ridículo agora, e quando conto a história às pessoas, porque elas meio que esqueceram, tenho de insistir em que foi um assunto sério. Algumas poucas pessoas ficaram muito zangadas, mas era uma loucura. "Beavis and Butt-Head" chegou em um momento no qual não havia muita coisa acontecendo no mundo, as coisas estavam indo bem, e de repente tudo mudou –o problema era a violência e a televisão. Agora, a situação é muito pior, se você realmente quiser comparar. Aquela conversa parece coisa do passado.
Da mesma forma que sempre lhe pediam para trazer "Beavis and Butt-Head" de volta, imagino que muita gente queira a volta de "O Rei do Pedaço".
Estamos estudando essa possibilidade, também. Acho que temos uma ideia de como poderia funcionar. Talvez deixe as pessoas morrendo de tédio, mas não quer dizer necessariamente que vá ser chato.
Minha filha mais nova, uns 10 anos atrás, assistia a "Gilmore Girls", e comecei a assistir com ela, e eu gostava demais –aquela era uma série com algo de zen. Nada muito horrível acontece. A Fox, na época, estava nos pressionando, tipo: "Queremos acontecimentos que mudem a vida dos personagens! Queremos que as pessoas fiquem de queixo caído com o que acontece em ‘O Rei da Pedaço’". Mas isso não é algo que pode rolar em toda série, certo? Não acho que todo mundo chegue em casa e ligue a TV pensando em "esta noite, quero ser chocado". Às vezes, as pessoas só querem assistir a alguma coisa que as reconforte na televisão.
Tradução de Paulo Migliacci
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