Com adolescente confusa, 'Red: Crescer É uma Fera' rompe barreira na Pixar
1ª diretora mulher do estúdio, Domee Shi mostra puberdade geralmente oculta
1ª diretora mulher do estúdio, Domee Shi mostra puberdade geralmente oculta
A Pixar tem uma reputação merecida como estúdio de manos –filmes concentrados em histórias masculinas (20 de seus 24 longas), diretores homens (23 de 24 filmes), roteiristas homens (50 dos 59). Mas o estúdio de animação controlado pela Disney vem tentando evoluir, em boa parte porque muitos de seus artistas exigiram que isso acontecesse.
"Contratem algumas mulheres", me disse Domee Shi recentemente. "Procurem pessoas em outras fontes de criação!". Shi, que se compara a um gato que "oscila entre a preguiça e as garras estendidas", chegou à Pixar como estagiária de storyboarding em 2011, aos 22 anos. Depois foi contratada como desenhista, contribuindo para filmes como "Divertida Mente" e "Os Incríveis 2".
Em 2018, ela se tornou a primeira mulher a dirigir um curta-metragem da Pixar. "Bao", um filme de oito minutos sobre um bolinho que ganha vida e permite que uma mulher chinesa envelhecida se console pela ausência dos filhos, valeu a Shi um Oscar —e a colocou no caminho para romper uma barreira ainda maior na Pixar. O 25º longa do estúdio, "Red: Crescer É uma Fera", chegou ao streaming Disney+ no dia 11.
Shi o dirigiu, a primeira mulher nos 36 anos de história do estúdio a conquistar essa distinção sozinha —Brenda Chapman foi contratada para dirigir "Valente", lançado em 2012, sobre uma princesa combativa na Escócia antiga, e levou crédito como codiretora. Mas foi demitida durante a produção devido a "diferenças criativas", e substituída por um mano.
Além disso, "Red" conta uma história abertamente feminina —a tal ponto que parece funcionar quase como uma espécie de corretivo para o foco da Pixar em amizades masculinas (Woody e Buzz, Flik, Mike e Sully, Mate e Relâmpago, Luca), uma das especialidades do estúdio em seus grandes sucessos.
O filme de Shi é sobre uma adolescente canadense de origem chinesa, Meilin Lee, que enfrenta uma crise por causa da puberdade: ela sente desejos sexuais, descontrole emocional, passa por sua primeira menstruação. Quando não consegue enfrentar seus problemas, se transforma em uma gigantesca panda vermelha.
Shi disse que o roteiro, que ela escreveu com Julia Cho, foi influenciado por totens da cultura pop como "Teen Wolf" e pela série "Lizzie McGuire". Outras influências que talvez mereçam menção são o monstro de marshmallow de "Os Caça-Fantasmas", o grupo de comediantes idosas de "Podres de Ricos" e o seminal "Are You There God? It’s Me, Margaret", romance de Judy Blume.
"A peônia vermelha floresceu?", pergunta Ming, a mãe de Meilin, no começo do filme. Mei, que está trancada no banheiro depois de se transformar em panda pela primeira vez, só consegue gaguejar em resposta. Ela está ocupada demais tendo um chilique por conta de sua súbita erupção de pelos.
"Eu queria que Mei passasse por uma transformação mágica na puberdade, e não conseguia tirar da cabeça a imagem de um panda vermelho, porque é tão engraçado e bonitinho, especialmente se você decidir desenhá-lo com dois metros e meio de altura", disse Shi. "E a cor também era importante. O vermelho representa a menstruação. Representa estar zangada, embaraçada, ou sentir muito desejo por alguém".
A voz de Mei vem da estreante Rosalie Chiang. A personagem pensa em garotos o tempo todo, e o mesmo vale para suas três melhores amigas. A obsessão delas por uma boy band resulta em um duelo entre pandas que em parte serve como clímax heroico do filme e em parte lembra uma luta de sumô. (Shi define o clima que buscava como "o sonho febril de uma pré-adolescente asiática"). Billie Eilish e seu irmão, Finneas, compuseram canções para o filme.
"Vamos chegar àquele show como meninas", diz uma das amigas de Mei, "e sair de lá como mulheres". Mesmo em 2022, isso é ousado para um filme de animação de grande estúdio, especialmente uma produção Disney. "É um lado das meninas adolescentes que nunca nos deixam ver", disse Shi. "Somos tão desajeitadas, suarentas, taradas e excitadas quanto qualquer menino".
Cerca de uma década atrás, a Disney e a Pixar começaram rotineiramente a mostrar raças, culturas e etnias diferente em seus filmes. O sucesso de "Operação Big Hero" (2014) e "Moana – Um Mar de Aventuras", em 2016, levou a filmes diversos como "Viva – A Vida É uma Festa", "Raya e o Último Dragão", "Soul" e "Encanto".
Alguns desses filmes também romperam estereótipos de gênero ao retratar mulheres ousadas e inteligentes que não precisavam do amor de um homem para se sentirem completas. ("Valente" merece crédito por promover essa mudança.) A Pixar também começou a incentivar narrativas mais progressistas em seus curtas, especialmente com "Out", no qual um homem decide parar de esconder que é gay.
Mas a sexualidade adolescente e as mudanças biológicas que vêm com ela continuavam a ser área restrita. Certa dose de insinuação? Talvez. Qualquer coisa mais poderia incomodar os pais conservadores e ameaçar a reputação da Disney como uma marca voltada à família.
"Como é que vou conseguir encaixar esse aspecto em minha história?", Shi se lembra de ter pensado antes de uma reunião com executivos importantes da Disney. "Como vender essa ideia e empolgar homens brancos e velhos que jamais passaram por essa experiência, e fazer com que queiram mais?"
A Disney, que, como os demais estúdios de Hollywood, vêm promovendo o empoderamento feminino em resposta à revolução MeToo, decidiu colocar seu dinheiro em jogo para promover as mudanças em que afirma acreditar: no segundo trimestre de 2018, a empresa deu a Shi um orçamento de cerca de US$ 175 milhões (R$ 878 mi) para contar sua história, e completo apoio ao filme por suas divisões de marketing e merchandising.
"Eu me senti apoiada o tempo todo, mesmo que às vezes eles ficassem com cara de incrédulos quando eu lhes mostrava alguma coisa", ela disse.
Na época, a Pixar estava passando por um período tumultuado. John Lasseter, o vice-presidente de criação do estúdio, tinha sido colocado em licença forçada depois de queixas de comportamento inapropriado no lugar de trabalho. Outros criticavam a empresa por não dar espaço às mulheres e a pessoas não brancas. Lasseter se desculpou e pediu demissão em junho de 2018.
Pete Docter, diretor de filmes da Pixar como "Up – Altas Aventuras" e "Divertida Mente", recebeu o comando da área de criação da empresa, o que foi uma sorte para Shi, já que tinha sido ele que a ajudara a desenvolver o excêntrico "Bao".
O curta tinha um final incomum, cujo objetivo era simbolizar o amor incondicional de uma mãe: a mulher abruptamente come o bolinho, com perninhas e tudo. Era o final que Shi sempre quis, mas ela tinha ficado com medo de propor a ideia aos seus chefes na primeira reunião.
"Eu me preocupava com a possibilidade de que ela comer o bolinho fosse sombrio demais, estranho, confuso, e de que aquilo não fosse o tipo de coisa que a Pixar normalmente faria". Por isso, sua primeira proposta foi algo mais seguro.
"Pete participou daquela reunião", recordou Shi, "e ele se levantou e disse, calma lá, aquela não era a versão de que eu tinha falado a ele duas semanas antes. Ele se virou para os outros e disse que meu final original era realmente cool, estranho e chocante".
Shi foi autorizada a propor sua ideia de novo, dessa vez sem mexer na ideia original. "Acho que, por causa daquela experiência, ganhei confiança para não ter medo de tentar coisas ousadas, estranhas e chocantes nas histórias que quero contar —para não me censurar", ela disse.
"Domee sabe que surpresa é algo que procuramos em todas as nossas histórias", afirmou Docter em um email. "Não queremos ser capazes de prever para onde as coisas vão. E no caso de Domee, isso é algo que acontece sempre —tanto em seu trabalho quanto com relação a ela como pessoa!"
"Bao" conquistou um Oscar como curta de animação em 2019. Em seu discurso de agradecimento, Shi implorou que "todas as meninas nerds que se escondem por trás de seus cadernos de desenho" começassem a contar suas histórias. "Vocês vão espantar as pessoas", ela disse, "mas provavelmente também vão criar conexões com elas".
"Red: Crescer É uma Fera" já despertou as duas reações. No Twitter, alguns usuários vêm celebrando a história de Mei como algo que demorou até demais para surgir. "Enfim representaram uma menina asiática ansiosa", escreveu um usuário.
O filme da Pixar também despertou um diálogo mais amplo sobre a maneira pela qual a menstruação costuma ser retratada pelos filmes de Hollywood em geral. (Em geral com uma boa dose de vergonha e repulsa.)
Mas houve reações negativas, além disso, especialmente por parte de um contingente de fãs homens de filmes de animação que atacaram o filme por conta de sua personagem inspirada em animês; muitos dos comentários desses fãs tinham um tom misógino.
A decisão da Disney de não buscar um lançamento nas salas de cinema e de colocar o filme no mercado via Disney+ criou novas tensões.
O filme de Shi será exibido gratuitamente aos assinantes do Disney+, o que levou alguns fãs a concluir que a Disney não acredita que "Red" mereça lançamento nas salas de exibição. "Luca" e "Soul", dois outros filmes recentes da Pixar, tiveram o mesmo tratamento. A Disney mencionou a ameaça ainda persistente do coronavírus como justificativa para sua decisão.
"O filme foi obviamente feito para o cinema", disse Shi. "Ao mesmo tempo, todos os meus filmes favoritos quando eu era adolescente foram filmes a que assisti em VHS. Eu voltava para ver um monte de vezes as cenas de que eu gostava".
Shi é filha única. Seus pais emigraram da China para Toronto quando ela era pequena. O pai dela, professor de arte, ajudou a despertar o amor da filha pela animação. Shi foi vice-presidente do clube de animes em sua escola de segundo grau. A mãe dela era dona de casa.
Quando Shi tinha cerca de 13 anos, ela e a mãe começaram a se desentender. "Eu estava ingressando aos poucos no mundo da cultura ocidental, e era muito diferente do mundo dela", disse Shi. "Eu sentia aquele distanciamento acontecendo, não queria que acontecesse, mas ao mesmo tempo queria".
Esse jogo de pressões tem posição central em "Red". O filme é sobre a puberdade, mas também sobre aquilo que as meninas herdam de suas mães. Ming quer transmitir à sua filha a capacidade de controlar completamente suas emoções, apontou Lindsey Collins, produtora do filme. Mas Mei precisa decidir se vai desobedecer a sua mãe e permitir que sua "fera interior" seja vista.
"Meninas e mulheres sempre são julgadas por não manterem o controle de suas emoções —nossa, essa menina é tão descontrolada", disse Collins. "Amo que nossa personagem principal esteja aprendendo, com o tempo, que não precisa deixar de lado suas emoções ou se livrar delas para ser considerada uma boa menina ou uma boa mulher. O filme em última análise trata de uma pessoa ser capaz de admitir suas emoções. Admita-as!"
O relacionamento de Shi com seu pai não é refletido em "Red", mas a cineasta disse que foi ele que insistiu que ela procurasse uma carreira na Pixar, depois de o estúdio inicialmente rejeitar sua candidatura, quando ela estava no segundo ano do Sheridan College, no subúrbio de Toronto. "Sem sacrifício não há vitória", ele dizia sempre.
Mas conseguir ingressar no clube de rapazes da animação foi uma empreitada muito complicada. "A sensação era a de que você precisava conhecer alguém que por sua vez conhecesse alguém", disse Shi. "E às vezes essa sensação continua, mas espero que cada vez com menos frequência".
Essa é uma mensagem que "Red: Crescer É Uma Fera" transmite claramente. A família de Mei opera um templo. Foi construído para "honrar nossos ancestrais", explica Ming, conduzindo convidados em uma visita. Mei faz questão de interferir. "E eles não eram todos homens", ela diz.
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci
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