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Cenas do filme "Instinto Selvagem (1992)", com Michael Douglas e Sharon Stone Divulgação

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Jason Bailey
The New York Times

Se você quer um retrato rápido de como o gosto das audiências de cinema mudou nos últimos 30 anos, pense no seguinte: o filme de maior sucesso em março de 1992 era "Instinto Selvagem", um thriller erótico que mostrava um astro de cinema estabelecido em cenas de sexo explícitas com uma novata sexy.

O filme chegou às salas de cinema precedido por meses de controvérsias e hipérbole, se tornou o assunto mais discutido nos locais de trabalho e nos editorais de grandes jornais e faturou espantosos US$ 352 milhões (R$ 1,7 bilhão) em todo o mundo.

Este mês, por outro lado, vê a chegada (depois de um longo adiamento) de "Águas Profundas", um thriller erótico estrelado por um astro estabelecido que faz cenas explícitas de sexo com uma novata sedutora. A despeito de astros que atraem a atenção dos jornais sensacionalistas e do retorno, depois de uma pausa de carreira de 20 anos, do cineasta Adrian Lyne, especialista em filmes de tom erótico ("Atração Fatal", "9 ½ Semanas de Amor"), "Águas Profundas" nem chegou a ser lançado nas salas de cinema, e em lugar disso fez uma estreia discreta no serviço de streaming Hulu —no Brasil, ele está disponível no Amazon Prime.

É difícil conciliar os marcos do sucesso comercial e cultural de 2022 –apelo aos "quatro quadrantes", classificação de censura amena, propriedade intelectual reconhecível– e o sucesso de "Instinto Selvagem", uma história proibida para menores que abusa do sexo e foi acusada também de misoginia e homofobia.

A obra foi controversa ao longo de toda a sua produção. Joe Eszterhas (roteirista de sucesso na década de 1980, com filmes como "Flashdance" e "O Fio da Suspeita") vendeu sua história sobre um policial que estava à caça de um serial killer pervertido ao estúdio de cinema independente Carolco por US$ 3 milhões (o que daria R$ 15 milhões na cotação atual), uma quantia recorde em 1990, mas logo abandonou o projeto, ruidosamente, por conta de desentendimentos criativos com o diretor Paul Verhoeven.

O roteirista afirmou que "a intenção de Verhoeven é fazer de ‘Instinto Selvagem’ um thriller sexualmente explícito", como se essa não tivesse sido a intenção de Eszterhas ao escrever um roteiro que, de acordo com o jornal The Los Angeles Times, continha "meia dúzia de cenas de sexo detalhadas e longas". Mas Eszterhas também afirmou em outras entrevistas que Verhoeven queria fazer uma exploração sensacionalista da bissexualidade da principal personagem feminina do filme. "Eu desprezo os homófobos", ele disse à colunista de fofocas Liz Smith. "Por isso, se a Carolco transformar o filme em uma história sobre lésbicas armadas de furadores de gelo, serei o primeiro a sair às ruas em protesto contra o resultado".

Mas ele não cumpriu a promessa, para dizer o mínimo. Eszterhas e Verhoeven se reuniram alegremente pouco antes do início da produção, em 1991 em San Francisco, e o roteirista revisou as alterações que o cineasta tinha feito em seu trabalho e determinou que os dois "tinham a mesma visão para o filme". Mas a filmagem foi interrompida por protestos de ativistas da Queer Nation e da ACT UP, que objetavam à representação dos personagens LGBTQ na história; o grupo feminista National Organization for Women criticou uma cena de estupro tratada de forma erótica.

Quem vê o filme hoje percebe com facilidade o motivo para que ele tenha despertado a irritação de tantas organizações. Ninguém pode acusar os cineastas de hesitação; mal se passam os créditos iniciais e já estamos vendo, pelo espelho do teto, um casal nu fazendo sexo, se contorcendo extasiado. Quando eles se aproximam do clímax, a mulher apanha um furador de gelo na beira da cama e apunhala o homem com ele repetidamente, em imagens explícitas. O sangue jorra sobre os corpos dos dois e sobre a cama, em uma alusão nada sutil a um orgasmo.

Entra em cena o protagonista, Nick Curran (Michael Douglas), detetive da polícia de San Francisco, recentemente divorciado e batalhando para não voltar a beber e a usar cocaína; ele também foi absolvido recentemente de uma acusação de ferir alguém a tiros acidentalmente, em um caso que no entanto continua sob investigação pela corregedoria.

O processo envolve sessões com a psiquiatra Beth Garner (Jeanne Tripplehorn), com quem Curran dormia frequentemente. Como detetive encarregado de investigar o caso do homicídio que dá início ao filme, Curran rapidamente coloca na mira a namorada ocasional da vítima, Catherine Tramell (Sharon Stone), que serve como um verdadeiro resumo de invenção de roteirista: romancista multimilionária e bissexual (ela escreve sob pseudônimo, mas sua foto enfeita as capas de todos os seus livros), que se formou com destaque na Universidade de Berkeley, onde estudou literatura e psicologia.

Curran a leva à delegacia para um interrogatório, o que resulta na cena mais famosa (e mais frequentemente parodiada) do filme: Tramell usa sua astúcia feminina (e falta de roupa de baixo) para intimidar completamente todos os homens presentes. (Stone afirmou em sua autobiografia que foi enganada pelos produtores para filmar a cena de nu frontal, que se tornou instantaneamente notória). Usando um vestido branco justo, com os cabelos loiros claríssimos presos, Stone é o maior exemplo de femme fatale da década de 1990: ela acende um cigarro e, quando alertada de que é proibido fumar, rebate: "O que vocês vão fazer, me acusar de fumo?"

O diálogo entre ela e Curran não é exatamente digno de James Cain, mas é interpretado do jeito certo: Douglas, incomodado, gagueja, um típico canastrão de filme noir, enquanto Stone pronuncia suas falas com o risinho diabólico de uma atriz astuciosa que está se divertindo demais. É fácil compreender por que o filme a transformou em estrela –e como teria fracassado sem ela, tanto por conta de sua beleza absurda (a história toda depende de que acreditemos que Curran literalmente arriscaria a vida para levá-la para a cama) quanto de sua interpretação inteligente.

Sem o desempenho deslumbrante de Stone, não resta muita coisa de grande valor em "Instinto Selvagem". O filme é tão exagerado em sua execução –o trabalho de câmera excessivamente vistoso de Jan de Bont, as cordas estridentes da trilha sonora de Jerry Goldsmith, a trama absurda do roteiro de Eszterhas– que o resultado chega quase a parecer uma sátira. (E talvez de fato seja. Muitos críticos, então e agora, desconsideram os ângulos satíricos dos filmes distópicos de ficção científica de Verhoeven ("RoboCop – O Policial do Futuro" e "Tropas Estelares").

Ao abraçar e amplificar as convenções dos filmes de suspense, Verhoeven ingressa no território do trabalho de Brian De Palma em filmes como "Vestida para Matar". Mas, como De Palma, Verhoeven tem dificuldades para superar alguns dos aspectos mais feios de sua história.

Afinal, os manifestantes não estavam errados sobre os problemas do filme. As cenas de lesbianismo chique são usadas apenas para deslumbrar o olhar masculino, e a bissexualidade é tratada como sintoma de instabilidade mental, se não de psicopatia escancarada; a crueldade com que Curran trata Roxy (Leilani Sarelle), a namorada paralela de Tramell, é enfatizada para despertar riso homofóbico na audiência ("me conta uma coisa, Rocky, de homem para homem").

E a cena em que Curran transforma o sexo consensual com Garner em um ataque claramente não consensual é indesculpável e repulsiva, não só por o filme continuar a retratar um estuprador casual como protagonista admirável, mas por o acontecido ser facilmente descartado na sequência, tanto pela vítima quanto pelo perpetrador, como resultado do calor do momento.

Assim, talvez seja esse o valor de "Instinto Selvagem": como cápsula do tempo. O filme tem muito a dizer sobre sua era e sobre os avanços (mesmo que pareçam minúsculos) que conseguimos desde então, e sobre o modo pelo qual um personagem tão reprovável quanto Nick Curran foi concebido como sucedâneo para a audiência, em um thriller de grande orçamento, simplesmente por ser um policial branco, heterossexual e homem.

Ou talvez exista um contraste mais direto a apontar. Na edição de 28 de abril de 1992 do jornal The Village Voice, um ataque ao filme pelo crítico C. Carr foi acompanhado por uma defesa escrita pela respeitada crítica de cinema Amy Taubin, para quem "foi divertido ver na tela uma mulher poderosa o bastante para colocar tudo de fora e não ser punida no final".

Além disso, não estamos ressaltando apenas que era novidade ver uma mulher retratada como um ser abertamente sexual, em 1992; isso continua a ser incomum ainda hoje. E o mesmo vale para a ideia de um filme feito por, para e sobre adultos, por mais complicados e imperfeitos que eles sejam. "Instinto Selvagem" é um rescaldo de uma era na qual os cineastas, mesmo que trabalhassem com grandes orçamentos, às vezes aceitavam grandes riscos. Isso faz desse filme liso, provocante e sujo algo mais do que seus criadores imaginaram, porque também o torna antiquado.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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