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Cinema e Séries
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Pioneira e ativista, Rita Moreno ganha documentário e segue sob holofotes

Na produção, artista recorda estupro no início da carreira

Rita Moreno em Nova York

Rita Moreno em Nova York Lucka Ngo -14.jun.2021/The New York Times

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Melena Ryzik
The New York Times

Rita Moreno tinha seis anos ao fazer sua estreia profissional, em um dueto com sua professora de dança espanhola em Greenwich Village, Nova York. “Lembro-me de todos os detalhes”, disse ela.

O figurino era um vestido pregueado tradicional. “Dançamos uma ‘jota’ —uma dança rural. E tocamos castanholas. Minha mãe me deixou colocar batom. Fiquei muito entusiasmada”. Isso aconteceu em 1937.

Pelas oito décadas seguintes, e mais, Moreno, que completará 90 anos em dezembro, sempre encontrou espaço sob os holofotes. E continua a dançar, como vemos nas cenas iniciais de um novo documentário, “Rita Moreno: Just a Girl Who Decided to Go for It”, que a mostra dançando em uma festa de aniversário com tema cubano.

Ela também preparou a festa. “Menino, odeio fazer isso”, diz ela no filme, enquanto abre seu faqueiro de prata do lado dos réchauds. “É perceptível que não sou uma verdadeira estrela, ou alguém mais estaria fazendo esse trabalho”,

“É por isso que não se deve acreditar em coisa alguma sobre a fama que você supostamente tem”, ela prossegue, com um palavrão. “Ela passa por altos e baixos”.

Moreno, que nasceu em Porto Rico e chegou a Hollywood por força de uma férrea determinação, ocupa um lugar singular no firmamento cultural. “Quase mijei nas calças”, ela me contou, ao descrever um momento elevado de sua carreira. (A irreverência a mantém centrada.) E Moreno com certeza recebeu muitas honrarias.

Ela completou o EGOT (ou seja, ganhou pelo menos um Emmy, um Grammy, um Oscar e um Tony) em 1977, o que inclui ser a primeira atriz latina a conquistar um Oscar, por seu papel inesquecível como Anita em “Amor, Sublime Amor”.

Os troféus não param de chegar; se houvesse um EGOT por honrarias de carreira —Kennedy Center Honors, Presidential Medal of Freedom— ela também o teria conquistado. Essas comendas se referem principalmente ao talento triplo de Moreno como atriz, dançarina e cantora.

O que recebeu menos elogios foi sua capacidade de desbravar caminhos —como pessoa não branca, como mãe (e agora avó), e como ativista de personalidade irreprimível (e às vezes inflamável).

“Ela é certamente um ícone por todas as razões notáveis —mas também é conhecida porque sua presença é uma injeção de ânimo”, disse a deputada federal Jackie Speier, da Califórnia, amiga de Moreno há duas décadas.

E à medida que a carreira de Moreno segue —seu próximo trabalho será na refilmagem, de “West Side Story” por Steven Spielberg—, o status incomum da estrela só cresce. Há poucos colegas cuja longevidade se estende desde a era dos estúdios (o primeiro contrato de Moreno no cinema foi assinado com Louis B. Mayer, da MGM, que a definiu como “a Elizabeth Taylor espanhola”), aos filmes repaginados, memes e muito mais.

Para Mariem Pérez Riera, documentarista porto-riquenha que dirigiu o filme sobre Moreno, o papel dela é fundacional. “Sei de Rita desde que sei que existe o cinema”, disse.

Nas telas e fora delas, Moreno é a primeira a admitir alegremente que ama atenção. E a manipula destramente, com um estoque bem abastecido de histórias de bastidores sobre o show business e tiradas sarcásticas, mesmo que de vez em quando ela esqueça alguma palavra (na sua idade, “eu e os substantivos nos tornamos inimigos mortais” —essa é uma de suas tiradas).

A voz ruidosa que saudava uma geração dizendo “hey you guys” na abertura de “The Electric Company” ainda tem força suficiente para cantar, para forçar um sotaque e para alternar entre o profano e o poético; ela foi a voz na versão em “audiobook” das memórias da juíza Sonia Sotomayor, da Suprema Corte dos Estados Unidos, a pedido da autora, e depois as duas se tornaram amigas.

A influência de Moreno continua a ser forte. “Ela realmente nasceu para o palco”, disse sua filha, Fernanda Gordon Fisher. “Não precisa se esforçar muito —a coisa simplesmente acontece— é sua substância, é disso que ela precisa. Alimenta sua alma, alimenta sua energia”.

Mas convencer Moreno a fazer o documentário demorou quase um ano. “Eu não tinha certeza de que desejava confiar minha vida a alguém”, disse ela. “Porque, se era para trabalhar nisso, eu queria ser completamente honesta”.

Durante os 12 meses de produção, ela acrescentou, “essa foi uma das coisas que me lembrei de lembrar a mim mesma: Rita, não tente seduzir a câmera”. Ela aceitou ser filmada sem maquiagem —e, com relutância ainda maior, sem peruca.

Deu à equipe do documentário uma chave de sua casa em Berkeley, na Califórnia, para que eles pudessem estar lá na hora em que ela acordava, e acompanhá-la em seu percurso de carro (ela ainda dirige) até o estúdio para filmar “One Day at a Time”, sitcom em que estrela como uma avó cubana que rouba todas as cenas de que participa. Seu neto na série é interpretado pelo filho de Pérez Riera, e o documentário foi ideia de Brent Miller, sócio da produtora de Norman Lear, o criador da série.

Moreno também tratou de assuntos dolorosos, sobre alguns dos quais ela já tinha escrito em seu livro de memórias, lançado em 2013, como seu longo e tumultuoso caso de amor com Marlon Brando, que incluiu um aborto complicado e uma tentativa de suicídio de Moreno em 1961 —um evento transformador para ela.

A história dela é determinada pela falta de poder que Moreno tinha naquela era, especialmente como uma mulher não branca e caracterizada como símbolo sexual, relegada a papéis que ela define como “mocinhas de pele escura”, de diversas etnias mas unidas no fato de serem todas unidimensionais.

“Eu queria ser estrela de cinema”, ela me disse. “Mas nunca imaginei que seria tão difícil e tão doloroso. Nunca. Nunca”. No começo de sua vida em Hollywood, disse Moreno, ela foi estuprada por seu agente.

Rita Moreno em Nova York
Rita Moreno em Nova York - Lucka Ngo -14.jun.2021/The New York Times

Depois, continuou a trabalhar com ele, conta a atriz no documentário, “porque ele era o único que estava me ajudando na minha suposta carreira. Isso foi o mais espantoso para mim, que eu desse tão pouco valor a mim mesma”. Moreno disse que precisou de anos, e muita terapia, para ganhar consciência de seu valor.

Sentada em um sofá em um hotel em Manhattan, em uma manhã recente, com as pernas posicionadas de uma maneira que só é possível para quem foi dançarina a vida toda, Moreno parecia muito vivaz, apesar de acabar de ter saído de uma maratona de entrevistas (por conta da exibição do documentário no Tribeca Film Festival).

Seu cabelo grisalho reluzia como se entremeado por fios de prata, e ela estava usando um vestido listrado com uma linha de bainha irregular. Quando ela era menina, sua mãe, Rosa, uma costureira habilidosa, fazia todas as suas roupas, e mais tarde seus figurinos de dança.

Elas sempre viveram juntas mas eram um par complicado: mudaram-se para Nova York vindas de Juncos, em Porto Rico, quando Rita —então conhecida como Rosita Alverio— tinha cinco anos de idade, deixando para trás o pai da menina e seu irmão mais novo, a quem ela adorava, Francisco. Moreno nunca voltou a vê-lo: sua primeira desilusão.

E nunca teve coragem de perguntar à mãe por que ela havia deixado Francisco para trás. “Por mais forte que ela fosse, eu tinha o sentimento de que aquele era seu calcanhar de Aquiles, e que ela não suportaria falar a respeito”, disse Moreno. Quando adulta, ela contratou investigadores para localizá-lo, sem resultado.

Chegando a Nova York ainda no começo da onda de imigração de Porto Rico, Moreno, que não falava inglês, teve seu batismo quanto ao preconceito que a acompanharia por toda a vida. Mesmo Anita, a quem ela define como um exemplo para as mulheres hispânicas, foi pintada —literalmente— da cor errada: uma cor de “lama”, disse Moreno, como os demais personagens porto-riquenhos de “Amor, Sublime Amor”.

Quanto ela protestou contra a uniformidade, a maquiadora deu a entender que ela era racista, conta Moreno. Até depois dos 60 anos de idade, Moreno continuou a ser convidada para fazer papéis estereotipados.

E mesmo nos últimos anos, em uma ocasião profissional importante que ela não quis definir com mais clareza, Moreno disse ter passado por discriminação. “Foi uma situação em que fui diminuída, e eles nem tinham consciência disso”, disse Moreno. “O que torna a situação ainda pior”.

“Eu voltei para casa e literalmente chorei por três dias”, ela acrescentou. “Há cicatrizes que se curam perfeitamente bem, e outras que deixam a pele fina."

Recentemente, Moreno mesma foi criticada por ter saído em defesa de seu amigo Lin-Manuel Miranda contra críticas ao seu filme “In the Heights”, acusado de colorismo. “O que estou perguntando é se as pessoas não podem esperar um pouco e deixar o filme em paz”, ela disse em entrevista no programa “Colbert”. No dia seguinte, ela pediu desculpas pelo comentário.

“Sou muito emotiva —fiquei incomodada por meu amigo estar sendo criticado”, ela me disse, depois. “Não percebi que, ao defendê-lo, eu estava ignorando uma questão importante, e isso com certeza não foi deliberado." Ela acrescentou que sua declaração foi “insensível”. (Miranda aparece no documentário, do qual ele é um dos produtores.)

Porque Moreno parece tão jovem para sua idade, é fácil esquecer quanta história, quantas reviravoltas sociais e culturais, ela testemunhou, às vezes da primeira fila. Ela estava bem perto de Martin Luther King na Marcha a Washington (1963), e defendeu os direitos das mulheres e das minorias muito antes que isso se tornasse obrigatório para os artistas.

Continua engajada politicamente, mas aceita ser contestada em suas opiniões, disse Pérez Riera, a documentarista. “Ela vem de uma geração diferente, e compreende isso”, disse Pérez Riera. “É difícil superar isso, mas ela tenta, todos os dias. Às vezes, não acerta”.

Entre as pessoas que conhecem Moreno bem, as maiores revelações do filme envolvem seu casamento de 45 anos com o cardiologista Leonard Gordon, que ela descreve como um bom homem, ótimo pai e um mau encaixe para ela como marido. (Ele morreu em 2010.)

Moreno, que namorou com Elvis Presley para despertar ciúmes em Marlon Brando (funcionou), é escancaradamente sexual. “Metade do tempo em que estou com ela, Rita me faz enrubescer”, disse Speier, descrevendo um evento de arrecadação de fundos em que Moreno, que tinha cerca de 75 anos na época, se apresentou.

“Ela deslizava sensualmente por cima do piano, como se estivesse fazendo amor com ele”. Perguntada se estava solteira, Moreno respondeu que “pode apostar que sim”. Ela concluiu que é independente demais —e talvez ainda ambiciosa demais (está filmando uma comédia independente, na qual trabalha com adolescentes)— para um relacionamento.

“Adoro ficar sozinha”, disse ela. “Não é difícil ficar sozinha. Na verdade, é ótimo, se você gosta da pessoa com quem vive."

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci.

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