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Dono de motel espionou hóspedes por décadas e convidou o jornalista Gay Talese para fazer o mesmo

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Selo BBC Brasil

Em janeiro de 1980 o jornalista americano Gay Talese recebeu uma carta anônima em casa.

Era de um homem que dizia ter comprado um motel em Aurora, no Estado americano do Colorado, para “satisfazer suas tendências voyeuristas”.

O pequeno empresário dizia que tinha instalado grelhas de ventilação falsas no teto de vários dos 21 quartos para espiar os hóspedes enquanto estes mantinham relações sexuais.

O dono de Motel que espionou a vida sexual de seus hóspedes por décadas

Na carta, o homem explicava que não apenas queria contar com exclusividade a história de seus 15 anos de voyeurismo mas também o convidava para visitar o sótão do motel, local onde o proprietário se posicionava para espionar os hóspedes através das grelhas falsas.

Apesar do convite estranho, se levarmos em conta a carreira de Talese, a situação parece normal.

Na década de 1980, Talese já era um jornalista famoso, considerado um dos pais do chamado "new journalism", a corrente que elevou esse trabalho ao nível de arte literária, narrando cenas e pequenos detalhes com um ponto de vista.

Na época em que recebeu a carta, Talese estava promovendo o livro "A Mulher do Próximo", em que investigava os hábitos sexuais nos Estados Unidos antes da aparição da Aids.

Motel Manor
Motel Manor House, no Colorado (EUA), antes de ser demolido. - Grove Atlantic/ BBC

Ética

Nos últimos dias, no entanto, o próprio Talese sofreu questionamentos pelos métodos usados na investigação do caso do motel.

O jornalista foi ao motel do voyeurista e usou uma das grelhas falsas para observar um casal fazendo sexo oral sem pedir permissão.

Além disso, ele também ficou sabendo de um assassinato que ocorreu no motel e não fez a denúncia.

“Tenho 84 anos e sou jornalista há quase 65. Não acho que tenha que me defender”, disse Talese à BBC Mundo.

No dia 11 de abril, a revista "The New Yorker" publicou a reportagem de Talese chamada The Voyeur’s Motel (“O Motel do Voyeurista”, em tradução livre).

O artigo é uma amostra do livro homônimo que a editora Grove Atlantic lançará em julho.

O livro conta a história de Gerald Foos, um homem que, com o consentimento e ajuda de sua esposa Donna, comprou um motel em 1969 nos arredores da cidade de Denver onde montou o sistema de espionagem dos hóspedes.

Quando um casal atraente chegava, Foos e a esposa colocavam os dois em um dos quartos com as grelhas no teto.

Foos e Donna então subiam para a parte de cima para espiá-los.

Foos manteve registros do que observou desde que comprou o motel até 1995, quando vendeu o estabelecimento.

O proprietário reconhece que é um voyeurista, mas insistiu, nos depoimentos a Talese, que o que fazia tinha objetivo científico.

No entanto, é difícil confirmar se tudo o que Foos narra é verdade.

Para começar, suas primeiras anotações começam em 1966, mas, segundo averiguou Talese, ele comprou o motel em 1969.

A partir daí tudo pode ser realidade, delírio ou um pouco dos dois: desde os tradicionais relatos de encontros furtivos entre chefes e suas secretárias até histórias de sexo grupal.

A história é tão incrível que, horas depois de sua publicação, o cineasta Sam Mendes (Beleza Americana, Skyfall) foi confirmado como o diretor que vai levar "The Voueur’s Motel" às telas.

Talese afirma que vai se reunir com ele em breve para discutir os detalhes do filme.

Gay Talese
O jornalista Gay Talese em evento na cidade de Nova York, em 2013 - (Evan Agostini/Invision/AP)

Assassinato

De acordo com o artigo da "The New Yorker", em várias oportunidades Foos não foi apenas um observador.

Em uma delas, uma mulher foi morta.

Foos descobriu que um homem estava vendendo drogas no quarto onde estava hospedado com a namorada.

Um dia, Foos esperou os dois saírem para ir até o quarto roubar as drogas e, em seguida, destruir tudo.

Ao perceber o sumiço das drogas, o homem culpou a namorada e a estrangulou.

Foos viu tudo e, mais uma vez, fez anotações.

Mas o proprietário do motel não denunciou o assassinato, já que seu crime também seria exposto.

Talese ficou sabendo do assassinato pelas anotações de Foos e enfrentou o proprietário do motel, mas não fez mais nada a respeito.

“Passei algumas noites sem dormir, me perguntando se deveria entregar Foos. Mas pensei que já era tarde demais para salvar a namorada do traficante”, escreveu Talese no artigo para a "The New Yorker".

Para ter acesso ao motel voyeurista, Talese assinou um contrato que prometia jamais revelar o nome do proprietário e nem o lugar exato do estabelecimento.

Em 2013, Foos deu autorização completa para a publicação da história. Os crimes prescreveram.

30 anos de espera

Falando à "BBC Mundo" de sua casa em Nova York, Talese defendeu sua decisão de não denunciar o dono do motel.

“Trabalho em jornalismo há mais de meio século e acho que tenho uma consciência ética muito profunda sobre o que é apropriado e o que não é”, disse o escritor.

“Uma das coisas que os jornalistas mais respeitam é a proteção de suas fontes. Foi isso o que fiz." Talese afirmou que “nunca, nunca, nunca” publica informações com fontes anônimas pois não tem segredos com seus leitores.

“Esperei 30 anos para conseguir que me liberasse o uso de seu nome. Se não tivesse conseguido, nunca teria escrito O Motel do Voyeurista.”

De acordo com o que Foos contou a Talese, depois da publicação do artigo, o proprietário do motel recebeu ameaças de morte, e pessoas atiraram ovos contra a fachada de sua casa em Aurora.

A polícia foi chamada e “estava vigiando a casa”, de acordo com Foos.

A assessora de imprensa do Departamento de Polícia de Aurora, Crystal McCoy, informou à "BBC Mundo" que não há registros policiais em nome de Foos e nem de sua atual esposa.

Quanto a Talese, depois de alguns minutos de conversa, com a mesma rapidez com que atendeu ao telefone e se colocou gentilmente à disposição da "BBC Mundo", o jornalista encerrou a conversa.

Para Talese, era “estupidez” falar sobre a credibilidade de Foos como fonte jornalística. Era necessário ler o livro e não apenas um artigo que contava “10%” da história.

Apenas assim, de acordo com o autor, poderiam ser feitas perguntas que realmente fosse “sérias e críticas”.

“Pelo menos você não estaria me questionando por uma pequena parte. Quero ser questionado pelo todo.”

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