Uma noite especial com Cássia Eller
Ontem no final da noite a TV Cultura (SP) apresentou, em seu programa "Repertório Popular", uma pérola rara da MPB: o show "Violões", de Cássia Eller --gravado no Teatro Franco Zampari (SP), em 1996.
Acompanhada pelos talentosos violonistas Walter Villaça e Luce Nascimento, Cássia Eller apresentou um repertório da maior qualidade. "Nós", de Tião Carvalho abriu o espetáculo. "Eu soube que disseram por aí --e foi pessoa séria quem falou, você estava com saudades de me ver", diz a letra. E é bem verdade. Estava com saudades de Cássia Eller.
"Try a Little Tenderness" (J. Campbell, R. Connelly e H. M. Woods) é a segunda canção apresentada, e a única estrangeira. Em seguida, a cantora parte para Frejat e Cazuza, com "Blues da Piedade" --"vamos pedir piedade, Senhor, piedade pra essa gente careta e covarde".
No palco do Franco Zampari, sob o efeito de uma bela iluminação, Cássia Eller, com seus cabelos raspados zero, ladeada pelos dois violonistas de cabelos longos --faz uma figura teatral e carismática-- interpretando as canções com um diferencial todo seu de energia, com um jeito moleque de soltar a voz potente.
"Eu só peço a Deus um pouco de malandragem, pois sou criança e não conheço a verdade" --canta ela na sequência, o que talvez tenha sido o seu maior sucesso popular-- sempre de Cazuza e Frejat (Malandragem).
"Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher", diz a letra da música de Renato Russo (Primeiro de Julho) que Cássia passa a cantar. Na seguinte, mostra todo o seu carisma e a sua 'malandragem', interpretando ECT --de Nando Reis, Marisa Monte e Carlinhos Brown. "Tava em casa, a vitamina pronta-- ouvi no rádio a minha carta de amor" --marca registrada da cantora.
Logo após um rápido intervalo, Teco Cardoso, o apresentador do programa, dá flashes da trajetória da cantora carioca, que até tentou uma carreira lírica. Mas seu traquejo era mesmo popular. E dos melhores. Demonstra isso claramente na canção que começa em seguida: "Rubens" (Mário Manga).
Para começo de conversa, os violonistas arrasam no 'dedilhado'. E a letra de "Rubens" é um prato cheio para o doce ar de transgressão da cantora: "a sociedade não gosta, o pessoal acha estranho, nós dois brincando de médico, nós dois com esse tamanho!". Para arrematar, a cantora se esbalda nos versos seguintes: "minha mãe teria um ataque; teu pai, uma paralisia --se por acaso soubessem que a gente transou um dia. Rubens, eu acho que dá pé-- é, esse negócio de homem com homem, mulher com mulher".
"Socorro, eu já não sinto nada --em qualquer cruzamento, acostamento, encruzilhada"-- é a vez da canção "Socorro", de Arnaldo Antunes e Alice Ruiz. "Sei que vou morrer, não sei o dia" --cantou Cássia Eller numa releitura de "Na Cadência do Samba" (Ataulfo Alves, Paulo Gesta e Matilde Alves). A cantora veio a falecer no dia 29 de dezembro de 2001, aos 39 anos, no auge de sua carreira, em razão de um infarto do miocárdio.
"Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre... sem saber que o 'pra sempre' sempre acaba!". Foi a canção que veio a seguir: "Por Enquanto" (Renato Russo). "Uma noite longa, pra uma vida curta - mas já não me importa...", cantou Cássia Eller já no finalzinho do show. ('Lanterna dos Afogados' - Herbert Vianna).
Para terminar a transmissão de "Violões" e desfazer-se uma certa 'fantasia utópica' de que por alguns momentos se pode pensar, sem pensar realmente, que a cantora ainda estava ali, tão viva, tão próxima, tão cheia de energia... Cássia Eller nos deixa uma mensagem intensa com a sua voz marcante e inconfundível, na poesia nua e crua de Renato Russo: "os PMs armados e as tropas de choque vomitam música urbana --e nas escolas, as crianças aprendem a repetir a música urbana; nos bares, os viciados sempre tentam conseguir a música urbana". "Música Urbana 2" (Renato Russo). "Não há mentiras nem verdades aqui --só há música urbana".
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