Estreou na última quinta-feira (7) o espetáculo "Ou Você Poderia Me Beijar", de Neil Bartett e Handspring Puppet Company (autores inéditos no Brasil), no Núcleo Experimental (SP).

Depois de 60 anos de relacionamento, dois homens (Claudio Curi e Roney Facchini) têm grande dificuldade de enfrentar a iminente separação, já que um deles está muito doente (enfisema pulmonar) e perde gradativamente a memória em consequência do Mal de Alzheimer.

Os jovens que se conheceram aos 19 anos de idade tiveram muita dificuldade em entregar-se à paixão que os arrebatou. Thiago Carreira e Felipe Ramos vivem com intensidade o encontro que desemboca na longa história de amor e muita parceria. Ambos demonstram uma entrega total aos seus personagens e cativam o espectador com o seu processo de aproximação inevitável.

Em tempos em que uma novela acaba de celebrar um beijo gay bastante discreto no horário nobre, o beijaço que o jovem casal realiza na peça do Núcleo Experimental bota o de Félix e Niko no chinelo.

Mas o buraco no caso é bem mais embaixo. O casal na maturidade, formado pelos atores Marco Antônio Pâmio e Rodrigo Caetano, acompanha a história de forma mais equilibrada e, entremeando cenas de "flashbacks", todos interagem e reúnem peças importantes do quebra-cabeças que forma os seus 60 anos de relação amorosa.

As interferências externas se apresentam através da atriz Clara Carvalho, que aparece como a advogada, a cozinheira e a cientista que esclarece numa palestra o processo de degeneração da memória causado pelo Alzheimer. Sem se envolver muito na trama, a atriz costura com clareza as cenas que envolvem o casal em suas três fases.

Uma das mais belas cenas do espetáculo é o momento em que o ator Felipe Ramos entra de repente de sunga e, carregado nos ombros e sob a luz de um projetor, nada pelo ar como se estivesse mergulhado nas águas. Cena de impacto, muito bem realizada por Felipe e muito bem iluminada por Fran Barros.

O elenco é formado por atores de reconhecido talento. A direção é primorosa e sempre sensível do cara que entende e respira teatro: Zé Henrique de Paula (que também assina cenografia e figurinos). A delicada direção musical é de Fernanda Maia.

É impossível não destacar a presença cênica deslumbrante do ator Roney Facchini, que vive o velho doente na peça e atualmente está no ar com série "A Teia" (Globo), como o Delegado da Polícia Federal Nestor Muniz.

Desde a sua primeira aparição em cena, já com as reações de falta de ar que o enfisema acarreta, até os detalhes todos da postura, da expressão, das crises nervosas, de quando cai em depressão profunda ou num simples desligamento total do que acontece a sua volta. Facchini dá um verdadeiro show de interpretação. Sem excessos, sem economia - a personagem está sempre lá: presente e intensa – em seu pequeno gesto, em sua constante dificuldade de respirar, ou mesmo no vazio de seu olhar perdido e desamparado. Genial.

Trata-se enfim de uma grande história de amor e cumplicidade, cada vez mais difícil de acontecer. O fato de ser entre dois homens fica realmente em segundo plano. A verdadeira entrega no amor, o compartilhar "na alegria e na tristeza, na saúde e na doença" - o fazer ao outro o que desejaríamos profundamente que ele fizesse por nós. Essa é a questão.

"Ou Você Poderia Me beijar" é mais um belo espetáculo que traz consigo o "Padrão Núcleo Experimental de Qualidade".

Renato Kramer

Natural de Porto Alegre, Renato Kramer formou-se em Estudos Sociais pela PUC/RS. Começou a fazer teatro ainda no sul. Em São Paulo, formou-se como ator na Escola de Arte Dramática (USP). Escreveu, dirigiu e atuou em diversos espetáculos teatrais. Já assinou a coluna "Antena", na "Contigo!", e fez críticas teatrais para o "Jornal da Tarde" e para a rádio Eldorado AM. Na Folha, colaborou com a "Ilustrada" antes de se tornar colunista do site "F5"