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'Meus filhos biológicos têm direito de saber que estou morrendo'

Ilustração de mulher lendo uma carta enquanto segura a cabeça com a mão esquerda
Ilustração de Emma Lynch - BBC
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BBC News Brasil

Uma mulher jovem cujos filhos foram adotados quer que eles saibam que ela tem uma doença terminal. Mas as regras de seu país não permitem um contato direto, como escreve Georgina Hewes, então ela não tem certeza de que eles foram avisados sobre seu estado de saúde.

Em 2017, Hanna* foi informada de que ela teria seis meses de vida. "Quando recebi a notícia, liguei diretamente para o Serviço Social. Só precisava saber se meus filhos estavam bem", diz. Àquela altura, 11 anos depois de seus filhos gêmeos serem adotados, Hanna não tinha notícias deles há sete anos.

Como uma mãe adolescente que precisou passar por muitos cuidados e não contava com uma rede de apoio, o Serviço Social do Reino Unido considerou Hanna incapaz de cuidar dos recém-nascidos. Hanna descreve o momento em que viu seus gêmeos de 14 meses sendo levados para uma nova família como "o pior dia da vida".

Ela tinha 16 anos e passou mais de um ano lutando para mantê-los por perto, enquanto vivia em um lar provisório. "A minha mãe costumava me bater até eu ficar com a pele preta e azul. Acho que eles temiam que a história se repetisse", conta.

Como a maioria dos pais biológicos no Reino Unido, Hanna recebeu a possibilidade de fazer contato por "letterbox" (ou caixa postal, na tradução literal para o português) quando seus filhos foram adotados —um acordo que significa que ela poderia trocar cartas com os filhos e a família que os adotou até que eles completassem 18 anos.

No caso dela, o juiz estendeu a caixa postal típica de uma ou duas vezes por ano para três vezes a cada 12 meses, especificando que Hanna também poderia enviar cartões de aniversário e Natal para seus filhos, além de receber fotos. Mas o combinado na teoria muitas vezes sai diferente na prática.

Cerca de um ano depois que seus filhos se foram, fiel ao acordo de contato por caixa postal, Hanna recebeu a primeira de muitas cartas. Mas, em vez de animá-la, o fato a empurrou para uma "depressão mais profunda".

"A carta foi enviada como se tivesse sido escrita por meus filhos, dizendo 'mamãe e papai fizeram isso, nós fizemos aquilo...' Mas meus filhos tinham apenas dois anos. Ficou claro que eles não escreveram."

Com o passar do tempo, as cartas continuaram a chegar. Mas Hanna as ignorava cada vez mais. "Era como se eles estivessem seguindo um modelo específico —'Nós saímos de férias, andamos a cavalo…'"

"E nenhuma delas me disse nada que eu queria saber, por exemplo como meus filhos estavam se desenvolvendo ou quais eram seus interesses", conta. "No final, eu tirava as fotos do envelope e não lia as cartas, pois era muito doloroso."

Hanna não respondeu mais as correspondências, porque o sentimento de perda era muito grande. Então, quatro anos após a adoção, quando a vida estava voltando aos trilhos, ela finalmente resolveu escrever de novo.

"Eu escrevi e contei a eles sobre minha vida: que tinha um parceiro amoroso agora e que estava trabalhando. Falei sobre meu emprego e onde morava, e o quanto sentia falta deles, como perdê-los foi difícil para mim, e como eu pensava neles todos os dias e desejava que estivessem comigo", lista.

Porém, algumas semanas depois, ela recebeu uma notificação de uma autoridade local dizendo que a carta não havia sido enviada porque parte do conteúdo era "inapropriado".

No Reino Unido, a agência de adoção local atua como intermediária na correspondência por caixa postal. Isso ocorre em parte para que nomes e endereços não sejam divulgados —mas os funcionários dessas instituições também verificam o que as pessoas escrevem.

"O Serviço Social me disse que eu não deveria dizer onde eu trabalhava, que eu não deveria falar coisas do tipo 'Gostaria que vocês estivessem comigo'. Tudo tinha que ser positivo. Telefonei pedindo ajuda, mas eles continuavam me mandando panfletos sobre como escrever uma carta, o que não fazia sentido. Então desisti." Depois de um tempo, as cartas das crianças também pararam de chegar.

Ajudar as mães biológicas a escrever essas cartas foi o trabalho de Mike Hancock por dez anos. Ele trabalha para a PAC Family First Service, empresa que as autoridades locais podem contratar para ajudá-las a cumprir o dever legal de apoiar os pais biológicos de crianças adotivas.

"Temos que pensar em quem está recebendo a carta, se ela será enviada pela autoridade local e se os adotantes a mostrarão para as crianças", justifica. "Você não é encorajado a se emocionar nessas cartas. Se o pai biológico está muito chateado e sente falta da criança, ele não deve colocar isso no papel, pois esse tipo de informação pode incomodar as crianças."

A primeira carta é sempre a mais difícil, avalia Hancock. "Às vezes, os pais estão tão zangados, magoados, angustiados e não querem escrever. Muitas das mães estão traumatizadas por suas próprias experiências e pela adoção. Elas perderam os filhos e estão de luto."

Pais biológicos e famílias adotivas têm o direito de pedir apoio por meio de cartas, mas a qualidade e a oferta desses envios são irregulares, diz Anna Gupta, professora de serviço social da Universidade Royal Holloway, também no Reino Unido.

No país, algumas autoridades locais possuem coordenadores de caixa postal designados para apoiar e facilitar o contato, outros contratam esse tipo serviço de empresa, enquanto uma terceira parcela não segue nenhum dos dois modelos.

Se Hanna tivesse o apoio de Mike Hancock durante todos esses anos, as coisas teriam sido diferentes. Ela poderia conseguir enviar uma carta para os filhos e eventualmente até continuaria a receber as respostas.

Todos os anos, Hanna e seu parceiro comemoravam o aniversário dos filhos e cantavam parabéns, sem saber se algum dia conheceriam mais sobre eles. "Durante anos eu me preocupei e tive pesadelos de que eles tinham sido mortos... Eu não sabia nada, será que me contariam se algo acontecesse?", questiona.

Quando Hanna descobriu que sua própria morte era iminente, a grande questão era se os filhos seriam informados. Ela notificou a autoridade local que tinha insuficiência renal avançada, com perspectiva de viver por mais seis meses, e queria entrar em contato com os gêmeos. Mas nada aconteceu.

Dois meses depois do pedido, Hanna apenas recebeu um maço de 12 cartas antigas da família adotante que a autoridade local havia "perdido". Mais de um ano depois, ela foi contatada pelo PAC Family First Service por um motivo diferente e aproveitou para contar toda a história.

A funcionária começou a conversar com o Serviço Social, que localizou os adotantes dos filhos e os informou sobre a condição de saúde da mãe biológica. Enquanto isso, o PAC ajudou Hanna a elaborar a carta aos filhos para restabelecer o contato. O texto foi enviado para a autoridade local em 2020, muito tempo depois que os médicos disseram que ela morreria.

"Finalmente consegui contar aos meus filhos muitas coisas que eu carregava na cabeça e gostaria que eles soubessem", diz. Nesta carta, a mãe relata que havia pensado neles todos os dias, que colocou os objetos de quando eram bebês em uma caixa e que fixou fotos dos gêmeos em todas as paredes da casa. Ela teve que ser sedada quando eles foram tirados dela, porque simplesmente não conseguia lidar com isso, escreveu.

Mas, quando a carta foi enviada ao Serviço Social, mais uma vez Hanna foi informada de que não seria remetida, embora tenham dito que o material seria mantido em arquivo para seus filhos acessarem, caso quisessem, quando completassem 18 anos, daqui a 24 meses.

Uma carta muito mais curta foi enviada no lugar da original. Desta vez, Hanna teve permissão para expressar o quanto amava os filhos e dizer que tinha problemas de saúde —mas não conseguiu detalhar que estava gravemente doente.

"Eles não queriam que eu dissesse que estava tão mal quanto estou. Eles argumentaram que a primeira carta tinha muita informação e não queriam chatear as crianças... Eles não sabem que eu quase morri em quatro ocasiões."

REGRAS DA CAIXA POSTAL

A natureza do contato por caixa postal no Reino Unido difere de uma autoridade local para outra, de acordo com uma pesquisa do Observatório de Justiça Familiar Nuffield. Alguns permitem apenas cartas escritas, outros aceitam troca de fotografias, pequenos presentes, desenhos, artes ou cartões.

Em alguns casos, a correspondência só é permitida entre adultos. Em outros, as crianças adotadas estão diretamente envolvidas. Em um estudo de 2018, a professora Anna Gupta também descobriu que havia pouco acordo entre as autoridades locais sobre o que constituía um "conteúdo apropriado".

Alguns funcionários do sistema de adoção liam todos os textos enviados e voltavam o conteúdo para o autor da carta caso considerassem que algo precisava ser mudado. Outros não faziam nada disso. Uma mulher adotada que foi entrevistada pelo estudo de Gupta disse que partes das cartas que ela recebeu durante a infância foram apagadas —mas, por trás da tinta preta, ela podia ver seus pais biológicos dizendo o quanto a amavam.

Pouco depois de enviar a nova versão da carta, Hanna recebeu uma fotografia dos gêmeos. "No dia em que chegou a foto das crianças, eu passaria por uma cirurgia. Eu estava com tanto medo de dar errado —e precisava saber que eles tinham recebido minha carta. Isso me deixou mais determinada a nunca desistir."

Desde então, ela recebeu uma carta de cada um de seus filhos, informando-a sobre os estudos e interesses deles, mas não havia nenhuma referência à doença dela. Hanna duvida que eles tenham sido informados sobre o fato. No contato por caixa postal, são sempre os pais adotivos que recebem a carta e cabe a eles decidir o que dizem aos filhos.

Gupta, que atuou como assistente social por 30 anos, argumenta que os filhos de Hanna devem ser informados sobre a doença da mãe biológica e ter a chance de conhecê-la antes da morte. A especialista alerta que as crianças podem se ressentir se não forem consultadas sobre questões do tipo.

"Na minha visão, essas crianças estão potencialmente perdendo uma oportunidade única na vida. Se eu fosse a assistente social, falaria com os adotantes e perguntaria se eles desejam que seus filhos voltassem anos depois eventualmente sabendo que foram privados de uma última chance de conhecer a mãe biológica."

A pesquisa de Gupta mostra que muitas crianças adotivas querem saber sobre os pais biológicos em algum momento da vida. "Uma grande mensagem foi a de que precisamos preparar os adotantes a respeito do fato de que os filhos terão interesse sobre de onde vieram. E isso não tem nada a ver com problemas da família ou com as habilidades deles como pais e mães. É sobre o senso de quem esses indivíduos são e as origens deles", aponta.

Um homem que Gupta entrevistou foi adotado aos quatro anos de idade. "Ele era um CEO de sucesso e tinha uma ótima família adotiva, mas acordava todos os dias e se perguntava: 'Quem sou?'", relata. "Mesmo que esse homem ainda pudesse se lembrar da polícia arrancando-o dos braços de sua mãe, ele ainda sentia que ela o havia abandonado", diz. Conhecê-la poderia tranquilizá-lo disso, argumenta Gupta.

Uma pesquisa de outra especialista na área, a professora Beth Neil, da Universidade de East Anglia, também no Reino Unido, mostra que o contato por caixa postal, se bem administrado, pode contribuir para o senso de identidade de uma criança adotada, além de familiarizá-la com os pais biológicos. Isso traz mais segurança de que ela não foi rejeitada ou esquecida.

Mas o trabalho também mostra que o contato por caixa postal geralmente falha, como aconteceu no caso de Hanna. Neil descobriu que a maioria dos contatos são abandonados no meio da infância. Muitas crianças sequer sabem que recebem (ou receberam) cartas dos pais biológicos.

Assim, cada vez mais, o contato está sendo feito entre filhos adotivos e pais biológicos nas mídias sociais, ignorando os processos e apoios formais. Em 2018, uma pesquisa da agência de adoção do Reino Unido descobriu que um quarto dos adolescentes adotados teve algum tipo de contato não mediado com a família biológica no ano anterior.

E todo esse cenário está levantando questões sobre como é possível melhorar o sistema de caixa postal. Alguns argumentam que, numa época em que a escrita de cartas se tornou menos comum, outros meios de comunicação podem ser mais apropriados. No Reino Unido, algumas autoridades locais já estão adotando um modelo de contato presencial —ou, durante a pandemia, por meio de videoconferências.

Em um discurso em 2018, quando o juiz Andrew McFarlane assumiu o cargo de presidente da Divisão de Família na Alta Corte de Justiça do Reino Unido, ele sugeriu que as crianças adotadas deveriam ter contato com uma gama mais ampla de familiares biológicos, principalmente irmãos.

Ele também questionou se, uma vez que uma criança se estabeleça em uma nova família, os pais adotivos devem continuar a "ter um veto efetivo" sobre o contato entre a criança e a família biológica.

Para as mulheres que futuramente podem ficar numa situação parecida à de Hanna, isso pode significar uma boa notícia. Porém, para a Hanna de hoje, de 32 anos, o melhor que ela pode fazer é continuar desafiando os prognósticos médicos e manter-se viva até que os filhos decidam que é hora de procurá-la.

"Sou uma lutadora. Não vou a lugar nenhum até que esteja pronta. O próximo passo é conhecer meus filhos", diz. "Enquanto eu estiver viva, eles podem me encontrar. Se não der certo, eles terão acesso algum dia aos papéis do tribunal que mostram como lutei para mantê-los."

*Hanna é um pseudônimo

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