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O que seu cocô revela sobre sua classe social

Em estudo inédito, pesquisadores usaram dados sobre fezes para buscar indicadores socioeconômicos
Em estudo inédito, pesquisadores usaram dados sobre fezes para buscar indicadores socioeconômicos - BBC Brasil/ Getty Images
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Celina Ribeiro

Um laboratório da Universidade de Queensland, na Austrália, está armazenando algumas amostras incomuns: as fezes de mais de um quinto da população do país.

As amostras, coletadas em estações de tratamento de esgoto em todo o país, congeladas e enviadas pelos Correios para pesquisadores da universidade, foram descritas como um tesouro de informações sobre os hábitos alimentares e de consumo de medicamentos de diferentes comunidades.

À frente da pesquisa estão Jake O'Brien e Phil Choi. Eles coletaram essas amostras durante o último censo nacional da Austrália, em 2016 e, no primeiro estudo do tipo, analisaram as fezes para medir diferentes hábitos alimentares e de estilo de vida.

Em linhas gerais, os pesquisadores descobriram que, quanto mais rica a comunidade, mais saudável é sua dieta. Nos extratos socioeconômicos mais altos, o consumo de fibras, cítricos e cafeína era maior. Nos mais baixos, medicamentos prescritos apresentaram uso significativo.

RETRATO DO CONSUMO

O estudo tentou colocar em prática aquilo que os pesquisadores há algum tempo pressupõem: as fezes fornecem informações valiosas sobre o consumo de alimentos e medicamentos de uma comunidade.

Choi e O'Brien argumentam que, com esse método, as equipes podem ter indicações quase em tempo real sobre mudanças nos hábitos, o que pode ajudar a informar as políticas e a comunicação referentes à saúde pública.

Extrair informações sobre as comunidades examinando seus dejetos é chamado epidemiologia das águas residuais. A prática existe há cerca de duas décadas e é usada predominantemente para monitorar o uso de drogas ilícitas nas populações. Esse método tem a vantagem de fornecer informações mais objetivas sobre uma área mais específica.

Alguns estudos já testaram o uso de drogas legais, como a nicotina; outras equipes de pesquisa estão usando esse tipo de material na detecção precoce de surtos de doenças.

Mas o uso dos dejetos como indicador da alimentação tinha ficado, até agora, majoritariamente na teoria.

Choi diz que, quando perguntadas sobre coisas como uso de drogas ou alimentos consumidos, as pessoas às vezes relatam hábitos mais saudáveis ​​do que realmente têm.

"Você geralmente encontra em pesquisas que as pessoas relatam excessivamente o consumo de alimentos saudáveis ​​e um consumo baixo de itens como salgadinhos", diz Choi.

A análise de águas residuais pode ser útil principalmente de duas maneiras, diz O'Brien. A primeira consiste em identificar disparidades entre comunidades; e a segunda, em rastrear mudanças nessas comunidades ao longo do tempo.

"Se você tentar implementar algo que espera gerar uma mudança positiva, precisará medir o sucesso dessas intervenções", diz ele.

A CORRELAÇÃO DA CAFEÍNA

Encontrar exatamente o que poderia ser testado foi o desafio inicial para pesquisadores. Afinal, os dejetos contêm não apenas urina e fezes, mas frequentemente também resíduos de produtos de higiene e beleza, restos de comida e produtos industriais.

Assim, a equipe precisou encontrar biomarcadores específicos relacionados a alimentos que são apenas ou predominantemente produzidos pela excreção humana.

O estudo utilizou dois biomarcadores associados ao consumo de fibras e um relacionado à ingestão de cítricos —itens da alimentação considerados característicos de uma dieta saudável.

Em todos estes indicadores, as comunidades com os melhores níveis socioeconômicos apresentavam forte correlação com o consumo. Em outras palavras, de um modo geral, as áreas mais ricas tinham dietas mais ricas em fibras e cítricos.

Também se constatou que a ingestão de cafeína é maior nos estratos superiores, especificamente em áreas onde o preço do aluguel é alto —o que já foi reforçado por outros estudos que mostraram que café expresso e moído são mais frequentemente consumidos por pessoas com no mínimo diploma de graduação.

Os pesquisadores apontam que, entre os australianos, os mais ricos têm mais motivações culturais e econômicas para consumir mais café.

Na outra ponta, as comunidades mais pobres apresentaram mais resíduos de medicamentos, em particular o tramadol (analgésico à base de opioides); atenolol (remédio para pressão arterial); e pregabalina (anticonvulsivo). No entanto, as duas últimas foram também associadas às populações mais velhas, que também podem tender a ter uma renda mais baixa.

Verificou-se que outros analgésicos, medicamentos e antidepressivos estão relacionados a menor nível socioeconômico, mas não na mesma dimensão.

Os pesquisadores esperam repetir a pesquisa no próximo censo, obtendo, dessa maneira, informações sobre se alguma mudança pode estar acontecendo e que outros métodos de pesquisa ainda podem ser descobertos ou aprimorados.

Por exemplo, neste estudo, o uso de antibióticos é distribuído de maneira bastante uniforme entre diferentes grupos socioeconômicos, indicando que o sistema de saúde subsidiado pelo governo está fazendo seu trabalho; caso essa distribuição comece a mudar em pesquisas futuras, isso poderá ser constatado em novas rodadas.

DESIGUALDADE REFLETIDA NA SAÚDE

O estudo confirma um fenômeno global conhecido como gradiente social da saúde, em que bons indicadores, como relacionados ao tabagismo e à obesidade, estão associados a melhores níveis socioeconômicos.

Embora os australianos acreditem que o país é igualitário, a desigualdade, conforme indicado pelo estudo das águas residuais, é um problema ainda não solucionado.

Um relatório de 2018 constatou que a Austrália apresentava níveis de desigualdade de renda acima da média da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), embora apareça como mais igualitária que o Reino Unido e os EUA.

Um australiano entre os 20% mais ricos tem cinco vezes mais renda do que alguém que vive no quintil inferior. E, de um modo geral, mais dinheiro significa uma maior capacidade de comprar alimentos perecíveis, como frutas e legumes; uma maior escolaridade indica maior domínio de informações sobre nutrição.

Mas o estudo encontrou uma exceção significativa nessa relação entre classe e dieta: áreas com uma alta proporção de domicílios que não falam inglês também apresentaram taxas relativamente altas de consumo de fibras e cítricos, apesar de terem indicadores socioeconômicos inferiores. Isso possivelmente reflete a forte presença de alimentos naturais na dieta tradicional de imigrantes.

Catherine Bennett, diretora de epidemiologia da Universidade Deakin, em Victoria, diz que o estudo de Queensland é interessante por aprimorar a epidemiologia das águas residuais. Os pesquisadores também deixaram claras suas limitações, avalia ela.

"Tudo o que foi dito é o que chamamos de estudo ecológico em epidemiologia. O termo quer dizer que não estamos usando dados individuais, mas coletivos", diz Bennett.

A pesquisadora lembra que esses estudos já foram usados, por exemplo, para verificar se houve redução no consumo da nicotina após a introdução de embalagens padronizadas de cigarro na Austrália.

"O que você não sabe é se todos os fumantes estão fumando menos ou se há menos fumantes na comunidade. Sempre precisamos ser um pouco cautelosos ao analisar esses estudos, porque trata-se de uma associação no sentido mais amplo, não é possível estabelecer relações rígidas de causalidade."

Os estudos sobre nicotina, assim como a pesquisa recente sobre dieta e medicamentos, são validados no conjunto, com outras pesquisas. "É uma oportunidade realmente interessante, desde que não tentemos interpretar demais os dados", diz Bennett.

Após a validação dos dados, acrescenta, o método "é uma maneira útil de monitorar de perto o que está acontecendo nas camadas da população".

BBC News Brasil
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