'Anitta é afinada, musical, com muitas qualidades', diz produtor que ajudou lançar Bossa Nova há 60 anos
O executivo comandou a Odeon, além da Philips e Warner Music
Um quarto de pensão no Leblon, na zona sul do Rio, era a casa de André Midani em 1957, dois anos depois que voltara da França. Por isso, o então diretor de promoções da extinta Odeon não pôde receber um rapaz de Juazeiro, na Bahia, que voltava ao Rio após passar alguns meses entre Porto Alegre e Minas Gerais.
O impasse foi resolvido por Aloysio de Oliveira, então diretor artístico e companheiro de Midani na gravadora, que se ofereceu para que escutassem em sua residência o cantor que havia sido indicado por Dorival Caymmi.
Sentado em um banco revestido de couro, Midani arregala os olhos para demonstrar o assombro que sentiu quando João Gilberto dedilhou os primeiros acordes de seu violão, na casa do amigo Aloysio de Oliveira. "Era a música que a juventude brasileira não tinha", ele recorda, e, em seguida, elenca boleros e artistas estrangeiros que compunham o panorama musical da época.
Midani ri quando questionado sobre os esforços que João Gilberto fez para divulgar o 78 rotações com "Chega de Saudade" e "Bim Bom", um ano depois, já em 1958, no que é considerado o disco inaugural da Bossa Nova. "Ele (João Gilberto) sempre foi muito difícil, reclamava de tudo", relembra.
Desde que a Bossa Nova explodiu, Midani acompanhou de perto as movimentações de uma turma "de classe média, branca e que achava que trabalhar era para os outros", como ele analisa, retificando a observação segundos depois. "É bem verdade que muita gente trabalhou firme: o Tom (Jobim), o Menescal, a Nara (Leão), o Vinícius (de Moraes), que veio um pouco depois."
O executivo que comandou a Odeon, além da Philips e Warner Music, conta à BBC Brasil o que para ele seria o legado do movimento, 60 anos depois da sua estreia oficial. "O grande legado foi ela ter ganhado o mundo. Os Estados Unidos, o Japão, a França, a Itália, porque eles, até hoje, escutam e trabalham a Bossa Nova", comenta.
O olhar crítico e a intuição que o fizeram apostar na Bossa Nova, nos Tropicalistas e no rock nacional apontam, nesse momento, para Anitta. Midani trabalhou com a funkeira em 2015, no projeto Inusitado, quando reuniu no mesmo palco Arnaldo Antunes, Arlindo Cruz e Anitta. "Eu disse que ela poderia cantar tudo, menos funk", comenta, elogiando a cantora. "Ela é afinada, musical, com muitas qualidades. Lamento que o meu trabalho com ela tenha durado só duas noites."
Aos 85 anos, André Midani reflete sobre os caminhos da Bossa Nova ao longo dos últimos anos, o crescimento do sertanejo e o cenário atual da música popular brasileira. "Há uma falência, timidez, até falta de imaginação com Rio de Janeiro e São Paulo, que se acomodaram no que era a Bossa Nova. Quer cantar como o João Gilberto, tocar violão como o João Gilberto. São Paulo e Rio de Janeiro não têm mais grupos de rock dizendo alguma coisa de fato, por exemplo."
BBC Brasil - Como foi o primeiro encontro com João Gilberto, em 1957? Ele ainda não era conhecido e tinha passado uma primeira temporada ruim no Rio de Janeiro.
André Midani - O Dorival (Caymmi) chegou ao estúdio da Odeon, me chamou e fomos para a minha sala. Nisso, apareceu também o Aloysio de Oliveira, que era diretor artístico. Dorival disse: "Gente, tem um menino que veio da Bahia, calado, conversa pouco, mas que canta demais. E tem uma divisão revolucionária. Vocês precisam ouvir isso". Marcamos um encontro e, no dia combinado, o Dorival chegou com aquele sujeito, que eu não sabia nem o nome. Conversamos um pouco e nada do moço abrir a boca. Até que em um determinado momento, o Dorival falou "João, toca aí um pouco, porque eles querem ouvir o que você faz". Ele tocou e o resto é história.
Eu tinha vinte e poucos anos e o Aloysio já era mais velho, na casa dos 50. Talvez por isso eu acreditasse em algumas mudanças na música brasileira, coisa que um homem mais velho, maduro, às vezes não bota fé. E eu tinha encontrado algumas semanas antes o Roberto Menescal, o Carlinhos (Lyra), a Nara (Leão), o Eumir Deodato, aquela turma da Bossa Nova. Quando ouvi o João Gilberto, resolvi deixá-los mais próximos e em contato, também reunindo o João Donato e o Tom Jobim. O Vinícius de Moraes veio um pouco depois. Tive uma visão, primeiro europeia, porque aquilo me lembrava a nova música francesa daquela época, que se distanciava do que era antigo. Ao ouvir a Bossa Nova, percebi que aquele estilo era música de jovem feita para o público jovem.
Há uma passagem curiosa no seu livro, quando você retrata os esforços que algumas pessoas da Odeon fizeram para divulgar o 78 rotações do João Gilberto, com "Chega de Saudade" e "Bim Bom", em 1958. O João Gilberto, que muitas vezes é retratado como antipático, fez a ponte-aérea Rio-São Paulo em várias ocasiões...
Sempre com muita má vontade... Sei disso pessoalmente porque era o diretor de promoções, então o meu trabalho era pegar o artista e arranjar participações em programas de TV, rádio. Ele era muito chato, mas não era tão chato quanto "infortunadamente" ele ficou. E digo "infortunadamente" porque é um homem infeliz, antipático e que não tem nada a seu favor como homem. Sempre foi muito difícil, reclamava de tudo.
Aquela história de chamar o Tom Jobim de burro é verdadeira?
Sim, no estúdio da Odeon. Quando estávamos gravando a música "Chega de Saudade", o Tom havia feito aquele arranjo maravilhoso, que depois seria um dos marcos da Bossa Nova. O João, em um determinado momento, vira para ele e diz: "Tom, você é muito burro!". Sempre houve uma antipatia do João com o Tom, até que o Tom não aguentou e se distanciou.
Por que a Bossa Nova perdeu espaço a partir de 1965, 1966? O que fez com que a juventude perdesse o interesse nesse estilo? Houve o regime militar, a chegada da Tropicália...
A música no Brasil, um pouco antes da Bossa Nova e até os anos 1990, sempre acompanhou a temperatura do país. Você tinha Dóris Monteiro, Lucio Alves, que já faziam um bolero diferente do que existia. Quando o Juscelino Kubitschek, com aquela ideia de prosperidade, assumiu a Presidência, a Bossa Nova começou a ganhar força. Sobre 1964, é preciso ponderar uma coisa: quando começou a revolução, já se sabia que os militares iam ficar no poder. O Carlos Lyra e a Nara Leão, antes de muita gente, perceberam que a Bossa Nova não responderia mais aos anseios das pessoas. A Nara, por exemplo, foi fazer o Teatro Opinião, com Zé Keti. Se você meditar um pouco, há uma estreita relação entre a corda musical e a corda política no Brasil.
Você falou da Bossa Nova como música pra juventude. Há uma música para a juventude atual ou está tudo misturado?
Você tem muita música para juventude, mas a configuração do mercado brasileiro de música mudou, devido à evolução social e à ascensão econômica. São três coisas: a primeira é que o Jorge Ben desceu da favela e compôs músicas que não eram samba. Abriu uma porta absurda, trouxe o funk, Tim Maia, Banda Black Rio, todo mundo veio com Jorge Ben. De repente, a música negra tornou-se importantíssima, à medida que a expansão demográfica nas regiões carentes também aumentou.
A segunda coisa é a evolução social. Essas pessoas fazem música. Tem coisa que você gosta, outras nem tanto, mas ela está lá, borbulhando. O terceiro fator é a soja no Brasil. Quando você pega Mato Grosso, interior de São Paulo, interior do Paraná, Goiás, é tudo muito próspero economicamente. Esse nicho também tem uma cultura, e quanto mais dinheiro você tem, mas a sua cultura vai se infiltrando. É disso que surge o sertanejo de hoje.
Além disso, há uma falência, timidez, até falta de imaginação com Rio de Janeiro e São Paulo, que se acomodaram no que era a Bossa Nova. Quer cantar como o João Gilberto, tocar violão como o João Gilberto. São Paulo e Rio de Janeiro não têm mais grupos de rock dizendo alguma coisa de fato, por exemplo.
Recentemente você disse que vivemos um engodo feliz, por causa da dependência de nomes como Chico, Caetano. Como cruzar essa linha e criar artistas que possam atingir essa importância para a cultura brasileira?
Não há como romper ou cruzar essa linha, com artistas desse nível. Você precisa ignorá-los. Os jovens compositores precisam odiar, recusar, agredir, mandar à merda.
É um pouco do que a Tropicália fez em relação à Bossa Nova, mesmo com a admiração que se tinha...Exato! E foi o que a Bossa Nova fez com quem veio antes dela, com o Francisco Alves, a Carmen Miranda...
Quais foram os desdobramentos da Bossa Nova para além das influências em artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Ben e outros? Ela teve vida própria como estilo musical?
A Bossa Nova está impregnada na música brasileira, só que cada vez mais de maneira mais sutil, o que é péssimo. Agora, o grande legado cultural da Bossa Nova foi ela ter ganho o mundo. Os Estados Unidos, o Japão, a França, a Itália, porque eles, até hoje, escutam e trabalham a Bossa Nova.
Queria te perguntar da Anitta. Ela participou do seu projeto Inusitado, em 2015, com Arnaldo Antunes e o Arlindo Cruz. Ela é a maior artista brasileira na atualidade?
De certa maneira, sim. E ouvi muita coisa, de muita gente, quando chamei ela para trabalhar comigo. Ela estava começando ainda... Peguei algumas referências, todas muito positivas. Depois disso, telefonei para o Arnaldo Antunes, que topou na hora. O mais interessante disso tudo é que o Arlindo Cruz veio com um amigo da família dela, que me contou que ela viveu no samba de raiz desde que nasceu. Um dia você vai ver, ela vai gravar como sambista. E o pessoal vai precisar se cuidar, porque ela é afinada, musical, com muitas qualidades. Lamento que o meu trabalho com a Anitta tenha durado só duas noites, dois ou três ensaios. Tive uma participação pequena, mas decisiva na sua carreira, porque aí o Gilberto Gil se interessou no seu trabalho, depois o Caetano. Foi tão importante quanto outras coisas que fiz no passado e pelas quais sou exaltado.
O que você tem ouvido de música atualmente?
Tem muita coisa boa: Baiana System, Alice Caymmi, Tulipa Ruiz, Mahmundi... É claro que o que é bom para mim, pode não ser bom para você. E música boa é aquela que toca aqui (aponta para o coração). Música é emoção. Tenho ouvido algumas coisas do Brasil, dos EUA. O que acontece é que agora a música da Síria, do Egito, de Zagreb, da França, da Itália, são todas parecidas, feitas iguais ao sertanejo daqui. O que ninguém percebe é a acomodação das pessoas dentro desse novo mundo da tecnologia.
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