Ataque racista contra Seu Jorge no RS escancara o 'bolsonarismo recreativo'
Apoiadores do presidente se sentem no direito de humilhar quem pensa diferente
Quase cem anos atrás, Josephine Baker mudou-se dos Estados Unidos para a França. Já consagrada como uma grande estrela do teatro de revista, a vedete não aguentava mais ser aplaudida por plateias brancas e, logo em seguida, ter sua entrada negada em restaurantes e hotéis frequentados por este mesmo público. Na França, ainda que também existisse racismo, pelo menos ela poderia jantar ou se hospedar onde quisesse.
Josephine Baker era reconhecida por muitos brancos americanos como alguém capaz de entretê-los, mas não digna de se sentar à mesma mesa que eles. Essa mentalidade absurda sobrevive até hoje, e logo no Brasil –um país que, até pouco tempo atrás, ainda se vendia como uma democracia racial.
O cantor e compositor Seu Jorge foi alvo de injúrias racistas durante o show que fez na última sexta (14) no clube Grêmio Náutico União de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Os insultos começaram depois que um jovem músico da banda do artista fez um breve discurso contra a redução da maioridade penal, chamando atenção para a matança indiscriminada de rapazes negros pela polícia.
Foi demais para alguns dos presentes ao evento, que passaram a gritar coisas como "vagabundo" e "safado", e também a imitar grunhidos de macaco. Às ofensas racistas, logo se juntou um coro mais do que esperado: "mito, mito", uma espécie de grito de guerra dos admiradores de Jair Bolsonaro.
É espantoso que um racista se sinta perfeitamente à vontade para escancarar suas preferências políticas. Num mundo ideal, essa revelação se voltaria contra o político em questão, mas não no Brasil de 2022.
Em seu livro "Racismo Recreativo", o advogado e doutor em direito Adilson Moreira explica que o termo se refere a uma das formas mais cruéis do preconceito racial, que se traveste de humor para atacar pretos e pardos. Quem reclama está fazendo mimimi: afinal, é tudo piada, "não se faça de vítima".
Vou tomar a expressão emprestada e ampliá-la para um outro fenômeno que se espalha pelo país, que eu chamarei de "bolsonarismo recreativo". Seus praticantes são apoiadores do atual presidente que empunham seu fanatismo como um escudo, ao mesmo tempo em que investem de maneira jocosa contra pessoas de outras raças, religiões ou credos políticos.
Presenciamos um deprimente espetáculo de bolsonarismo recreativo na quarta passada (12), quando uma corja de extrema-direita vaiou o sermão do arcebispo de Aparecida (SP) e perseguiu pessoas de camisa vermelha em frente à basílica da cidade. Um sujeito de camiseta da seleção e copo de cerveja verde na mão, que xingou uma equipe de TV, encarnou à perfeição esse comportamento abjeto.
Que, evidentemente, não é novo. Ele está presente há séculos no bullying nas escolas, nos gracejos machistas e homofóbicos, em qualquer anedota que a maioria dominante se sinta no direito de fazer contra as minorias. Mas o bolsonarismo exerce essa escrotidão com orgulho, como se tivesse um direito natural de humilhar e rir de quem não é bolsonarista.
Também exerce com covardia, é claro. Quando sente que pegou mal, o praticante do bolsonarismo recreativo inverte os papéis, alega que o perseguido é ele, chora lágrimas de crocodilo e diz até que viveu "as piores 24 horas da minha vida".
Seu Jorge e sua banda foram alvos do bolsonarismo recreativo em Porto Alegre. Mas não foram vítimas: não fugiram, não baixaram a cabeça nem deram a vitória ao inimigo. O cantor ainda divulgou um vídeo na terça-feira (18) em que deixa clara sua disposição para a luta contra o racismo.
Qualquer que seja o resultado das urnas no dia 30, o bolsonarismo recreativo continuará por aí. Cabe a nós identificá-lo, denunciá-lo e confrontá-lo. Todo bully enfia o rabo entre as pernas quando é peitado. Afinal, coragem nunca foi o ponto forte dessa turma.
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