'Moonage Daydream' sublinha a falta que faz David Bowie em tempos caretas
Transgressões do cantor britânico não têm paralelo entre os popstars atuais
Sei que eu estou passando recibo de velho, mas meus ídolos de juventude eram bem mais legais do que os da garotada de hoje em dia. Tive o privilégio de adolescer na década de 1970, ao som de Freddie Mercury, Mick Jagger e David Bowie. Os caras não faziam arte só na música: roupas, declarações e atitudes também influenciaram minha maneira de encarar a vida, e a de milhões de outros garotos.
Dos três, o mais abertamente político era Bowie, no sentido amplo da palavra. Ele não costumava declarar apoio ou repúdio a nenhum governo, mas era mais revolucionário do que muitos ativistas profissionais.
Abertamente bissexual, usava vestidos e maquiagem, sem precisar se definir como drag, trans ou não-binário. Até porque, no ano seguinte, estaria não só com um visual diferente, mas a bordo de uma nova persona. Seus heterônimos –Ziggy Satrdust, Alladin Sane, Thin White Duke e vários outros– eram reflexos de partes dele mesmo, falsos e verdadeiros ao mesmo tempo.
A imensidão do talento de David Bowie e o vanguardismo de suas propostas são mostrados, de maneira vertiginosa, no filme "Moonage Daydream", do americano Brett Morgen. Não se trata de um documentário convencional, com datas precisas e análises profundas, mas de uma colagem de clipes, performances ao vivo e entrevistas de Bowie, mais ou menos em ordem cronológica.
Quem não for familiarizado com o cantor e compositor, que morreu em 2016 aos 69 anos, não vai aprender muitos detalhes sobre sua biografia. Como ele começou sua carreira? Quem foi sua primeira mulher? Em que ordem saíram seus discos, e qual foi o de maior sucesso? Nada disso é mencionado.
Mas o próprio Bowie fala sobre si mesmo. Suas origens, suas influências, suas angústias. Ele admite que tinha medo de "enlouquecer", depois que seu meio-irmão mais velho foi internado com esquizofrenia. Mas o fato é que foi ficando cada vez mais lúcido e mais sábio com o passar dos anos.
David Bowie era, antes de mais nada, profundamente curioso. Viajou o mundo inteiro, experimentou de tudo, se expressou de muitas maneiras. Como ator, fez teatro na Broadway e participou de inúmeros filmes. Como artista plástico, produziu quadros e esculturas bastante interessantes.
Suas diversas falas ao longo de "Moonage Daydream" podem ser resumidas num manifesto poderoso: aproveite a vida ao máximo. Tire o máximo que puder de cada dia, e dê de volta. Seja quem você quiser: homem, mulher, bicho, tudo ao mesmo tempo agora. Faça o que você quiser, ninguém tem nada com isso. Só uma coisa é indispensável: a elegância, por dentro e por fora.
Se falasse agora o que falava em 1972, Bowie seria massacrado nas redes sociais. Seria xingado de pervertido e acusado de não ter Jesus no coração. Nem seus looks impecáveis escapariam da cafonice reinante entre os trolls da internet.
Bowie não foi o único astro do glam rock, nem o primeiro a borrar as fronteiras entre o masculino e o feminino. Também houve Alice Cooper, Marc Bolan, Bryan Ferry, Lou Reed, Iggy Pop e muitos outros, além dos já citados Jagger e Mercury. Mas foi Bowie quem teve a carreira mais variada, mais multifacetada, e quem desenhou mais claramente o mapa da mina para toda uma geração.
Ele mesmo previa que, depois dos anos de desbunde, uma maré de extrema-direita engoliria o planeta. Na mosca. Agora parece que estamos começando a sair desse período de retrocesso nos costumes, na economia e até mesmo nos direitos humanos.
O legado de David Bowie está presente em muitos artistas contemporâneos, como Lady Gaga, Harry Styles, Jão, Måneskin ou Pabllo Vittar. Mas ninguém encarnou com tanta intensidade o amor pela vida, o interesse pela arte e a liberdade individual. Como ele faz falta, ainda mais em tempos tão caretas.
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