Racismo estrutural dá as caras no É de Casa, provocando uma discussão mais que necessária
O primeiro passo para acabar com esse flagelo é admitir que ele existe
Ele está no meio de nós. Como uma versão maligna da Força dos filmes da franquia "Star Wars", o racismo estrutural permeia toda a sociedade brasileira. Invisível para muita gente, de vez em quando ele se manifesta de maneira inequívoca, calando a boca dos críticos que ainda duvidam de sua existência.
Foi o que aconteceu no sábado passado (11), durante o programa É de Casa, da Globo. A apresentadora Talitha Morete pediu à convidada Silene, uma cozinheira que foi ensinar os segredos de sua cocada cremosa, servisse o doce a todos os presentes no estúdio.
"A dona da cocada vai fazer as honras da casa, vai servir todo mundo", disse Talitha, entregando uma bandeja a Silene, que estava sentada. Todos riram e aplaudiram, até que o apresentador Manoel Soares –que é negro, assim como a convidada– se levantou. "Vamos fazer o seguinte?", perguntou ele à cozinheira. "Eu vou ser o seu garçom e você vai me orientar para quem eu vou servir, porque você não vai servir ninguém".
O programa seguiu sem maiores incidentes, mas as redes sociais entraram em ebulição. Inúmeros internautas identificaram no episódio um exemplo do racismo estrutural em ação, e caíram de pau em Talitha Morete. Será que ela teria pedido a mesma coisa a uma convidada branca?
Foi preciso que um homem negro saísse em defesa de uma mulher negra. Os brancos que estavam no estúdio acharam a situação absolutamente normal, corriqueira, e aposto que muitos espectadores brancos também acharam o mesmo.
O caso acabou servindo por jogar alguma luz sobre uma das maiores mazelas da nossa sociedade. Talitha Morete pediu desculpas através de seu perfil no Instagram, e teve a decência de não alegar que foi mal interpretada. "Errei e não há nada a ser dito para justificar ou minimizar esse erro, a não ser me desculpar", escreveu a apresentadora.
O racismo estrutural é sutil. Por vezes, se disfarça com a cordialidade que dizem ser típica dos brasileiros. Ele não tem nada a ver com os rompantes racistas de brancos contra negros, cada vez mais frequentes nos telejornais. Ao contrário: vale-se de sorrisos e simpatia para manter o negro numa posição servil.
O pior é que o racismo estrutural permite que muitos brancos não se sintam racistas. Afinal, eles não xingam ninguém na rua, tratam bem todo mundo, tem até amigos negros. Mas não se dão conta de que o racismo estrutural preserva seus privilégios, suas vagas na faculdade e seus empregos qualificados.
Quantas vezes nós, brancos, assistimos a uma novela ou a um filme com elenco 100% branco, ambientado no Brasil de hoje, e não percebemos nada de errado? Na imensa maioria das vezes, quando há atores negros, eles estão em franca minoria, ou relegados a papéis secundários. Produções da Suécia, um país que acolheu imigrantes do mundo inteiro, têm mais diversidade do que as nossas.
Frequentemente, quem tem uma atitude provocada pelo racismo estrutural não age por mal. Duvido muito que a intenção de Talitha Morete fosse humilhar a convidada, ou reafirmar a supremacia dos brancos. Mas, de maneira automática, a apresentadora reproduziu a opressão que aflige mais da metade dos brasileiros.
Ainda bem que ela se deu conta e prometeu ficar mais vigilante daqui para a frente. O primeiro passo para acabar com o racismo estrutural é admitir que ele existe, e que quase todos os brancos –mesmo os mais conscientes, mesmo os mais solidários– agimos como instrumentos desse mecanismo perverso.
Que este episódio no programa da Globo sirva para aprofundarmos a discussão e alterarmos nosso comportamento. O racismo estrutural, infelizmente, é de casa.
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