Por que tão poucos entendem como funcionam os incentivos públicos à cultura?
Quase todos os ramos da economia recebem algum tipo de financiamento estatal
Um artista famoso inventa um projeto qualquer. Um site de poesia, um livro de fotos de sua carreira, um filme em preto-e-branco falado em tupi-guarani.
Aí ele inscreve o tal do projeto na "lei Ruanney", ou seja lá como ela se chamar. Recebe 100 milhões, mas com uma condição: tem que apoiar o governo.
Então ele gasta um milhão no projeto, que pode ou não sair. Não presta contas de nada e usa o resto da grana para comprar um apartamento em Paris. Na época das eleições, lá vai o artista fazer campanha para o governo.
Por incrível que pareça, é assim que muita gente acredita que funcionem os mecanismos estatais de incentivo à cultura. Uma torneira aberta, destinada a manter algumas celebridades a favor do governo. A mamata precisa acabar!
Essa impressão errônea foi sendo criada ao longo dos anos nas redes sociais, alimentada por postagens maliciosas de grupos da extrema-direita e reforçada por casos reais de mau uso de verbas públicas.
Poucos entendem que, quando um projeto é aprovado pela Rouanet ou pela Ancine, na verdade ele só está autorizado a captar uma soma de dinheiro no mercado (que é sempre menor do que a solicitada). Os valores arrecadados poderão ser descontados dos impostos das empresas que os fornecerem: é a chamada renúncia fiscal.
Depois começa uma via-crúcis por departamentos de marketing. A maioria das empresas encara a renúncia fiscal em favor de projetos culturais como uma forma de propaganda. Por isto, costuma exigir a presença de sua marca ou produtos nos projetos que encampa. Também prefere obras de grande alcance popular, em detrimento das mais experimentais.
Não é raro que um projeto aprovado pela Rouanet, pela Ancine ou por outros mecanismos de financiamento não consiga arrecadar absolutamente nada. Ainda mais em tempos de crise econômica, como a que vivemos há quatro anos.
Muitos internautas acusam a classe artística de “mamar nas tetas do governo”. Ignoram que esse mesmo governo oferece renúncia fiscal, desoneração da folha de pagamento e dezenas de outras formas de incentivo a quase todos os ramos da economia brasileira.
Nossa indústria automobilística, por exemplo, produziria carros caríssimos – e invendáveis – se não ganhasse descontos nos impostos. Nossa soja também não teria preço competitivo no exterior, não fossem as inúmeras vantagens fiscais que recebe o agronegócio.
Além do mais, o valor que o Estado gasta em cultura é ínfimo. O valor anual dos projetos aprovados pela Lei Rouanet corresponde, aproximadamente, à metade do que é gasto com as pensões para filhas solteiras de militares falecidos. Mas disso ninguém reclama, não é mesmo?
Também não vemos queixas contra a isenção tributária das igrejas – especialmente as neopentecostais, que arrancam bilhões de seus fiéis e não precisam declarar nada ao Fisco.
Mas todo mundo se escandaliza com um filme produzido graças à renúncia fiscal. Se ele fizer sucesso, então não precisaria de financiamento público. Se não fizer, o Estado jogou dinheiro fora. Se for contra os valores do governo de plantão, Deus nos acuda, jamais deveria ter sido feito.
Toda essa discussão é pertinente neste momento delicado, em que Jair Bolsonaro ameaça colocar um “filtro” na Ancine – ou mesmo acabar com ela.
O presidente diz que a agência deveria incentivar a produção de longas sobre os grandes heróis da pátria. Talvez ele sonhe com um filme exaltando seu ídolo declarado, o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.
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