Tony Goes

Por que tão poucos entendem como funcionam os incentivos públicos à cultura?

Quase todos os ramos da economia recebem algum tipo de financiamento estatal

O filme "Dois Filhos de Francisco", que narra a vida da dupla formada por Zezé di Camargo e Luciano, é considerado uma das maiores bilheterias do país e teve auxílio da Lei Rouanet
O filme "Dois Filhos de Francisco", que narra a vida da dupla formada por Zezé di Camargo e Luciano, é considerado uma das maiores bilheterias do país e recebeu auxílio da Lei Rouanet - Vantoen Pereira Jr./Divulgação
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São Paulo

Um artista famoso inventa um projeto qualquer. Um site de poesia, um livro de fotos de sua carreira, um filme em preto-e-branco falado em tupi-guarani.

Aí ele inscreve o tal do projeto na "lei Ruanney", ou seja lá como ela se chamar. Recebe 100 milhões, mas com uma condição: tem que apoiar o governo.

Então ele gasta um milhão no projeto, que pode ou não sair. Não presta contas de nada e usa o resto da grana para comprar um apartamento em Paris. Na época das eleições, lá vai o artista fazer campanha para o governo.

Por incrível que pareça, é assim que muita gente acredita que funcionem os mecanismos estatais de incentivo à cultura. Uma torneira aberta, destinada a manter algumas celebridades a favor do governo. A mamata precisa acabar!

Essa impressão errônea foi sendo criada ao longo dos anos nas redes sociais, alimentada por postagens maliciosas de grupos da extrema-direita e reforçada por casos reais de mau uso de verbas públicas.
 

Poucos entendem que, quando um projeto é aprovado pela Rouanet ou pela Ancine, na verdade ele só está autorizado a captar uma soma de dinheiro no mercado (que é sempre menor do que a solicitada). Os valores arrecadados poderão ser descontados dos impostos das empresas que os fornecerem: é a chamada renúncia fiscal.

Depois começa uma via-crúcis por departamentos de marketing. A maioria das empresas encara a renúncia fiscal em favor de projetos culturais como uma forma de propaganda. Por isto, costuma exigir a presença de sua marca ou produtos nos projetos que encampa. Também prefere obras de grande alcance popular, em detrimento das mais experimentais.

Não é raro que um projeto aprovado pela Rouanet, pela Ancine ou por outros mecanismos de financiamento não consiga arrecadar absolutamente nada. Ainda mais em tempos de crise econômica, como a que vivemos há quatro anos.

Muitos internautas acusam a classe artística de “mamar nas tetas do governo”. Ignoram que esse mesmo governo oferece renúncia fiscal, desoneração da folha de pagamento e dezenas de outras formas de incentivo a quase todos os ramos da economia brasileira.

Nossa indústria automobilística, por exemplo, produziria carros caríssimos – e invendáveis – se não ganhasse descontos nos impostos. Nossa soja também não teria preço competitivo no exterior, não fossem as inúmeras vantagens fiscais que recebe o agronegócio.

Além do mais, o valor que o Estado gasta em cultura é ínfimo. O valor anual dos projetos aprovados pela Lei Rouanet corresponde, aproximadamente, à metade do que é gasto com as pensões para filhas solteiras de militares falecidos. Mas disso ninguém reclama, não é mesmo?

Também não vemos queixas contra a isenção tributária das igrejas – especialmente as neopentecostais, que arrancam bilhões de seus fiéis e não precisam declarar nada ao Fisco.

Mas todo mundo se escandaliza com um filme produzido graças à renúncia fiscal. Se ele fizer sucesso, então não precisaria de financiamento público. Se não fizer, o Estado jogou dinheiro fora. Se for contra os valores do governo de plantão, Deus nos acuda, jamais deveria ter sido feito.

Toda essa discussão é pertinente neste momento delicado, em que Jair Bolsonaro ameaça colocar um “filtro” na Ancine – ou mesmo acabar com ela.

O presidente diz que a agência deveria incentivar a produção de longas sobre os grandes heróis da pátria. Talvez ele sonhe com um filme exaltando seu ídolo declarado, o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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