Tony Goes

A execração de Claudia Leitte obscurece uma discussão necessária

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Em 2011, a produtora Conspiração conseguiu, através da Lei Rouanet, autorização para captar R$ 1,3 milhão para produzir 365 vídeos com Maria Bethânia declamando poemas. Esses clipes seriam disponibilizados num blog chamado “O Mundo Precisa de Poesia”.
 
Foi o bastante para que a internet entrasse em combustão espontânea. Bethânia foi xingada de tudo quanto é nome. A maioria de seus críticos entendeu que se tratava de um blog escrito, e que a cantora seria regiamente paga com dinheiro público para escrever bobagens. A gritaria foi tamanha que o projeto acabou sendo cancelado.
 
Cinco anos depois, a história se repete. Dessa vez, com uma soma bem menor e uma outra artista baiana —porém com menos prestígio que a irmã de Caetano Veloso.
 
A Ciel Empreendimentos Artísticos, editora que tem Claudia Leitte como sócia, foi autorizada pelo MinC a captar R$ 356 mil para a publicação de um livro sobre a cantora. Pediram R$ 540 mil, e nem tinham visto a cor do dinheiro. Ainda teriam que sair à cata de patrocínio, algo cada vez mais impossível em época de crise.
 
Esta notícia fez as redes sociais explodirem em chamas. A jurada do “The Voice Brasil” (Globo) de repente se tornou a inimiga número um da nação. Um meme se popularizou: “Eu não aceito pagar R$ 356 mil pelo livro da Claudia Leitte”. Como se a quantia saísse integralmente do bolso de quem postava o meme.
 
E logo surgiram as reclamações de sempre: o Brasil precisa de escolas, de hospitais, de vergonha na cara, etc. etc. É curioso como sempre achamos um desperdício qualquer investimento público em cultura. Sempre existem outras prioridades; sempre existe quem não goste do que foi financiado.

Campanha contra Claudia Leitte circula nas redes sociais
Campanha contra Claudia Leitte circula nas redes sociais - Reprodução
Aí caímos num paradoxo. Se o Estado banca um projeto de pouco apelo popular, é acusado de privilegiar obras que não interessam a ninguém. Se, por outro lado, o tal projeto for um sucesso comercial, então por que precisava de patrocínio oficial? Afinal, onde fica o meio termo?
 
No caso específico de Claudia Leitte, não ajuda em nada o fato dela estar longe de ser uma unanimidade. Claudinha é uma das cantoras mais queridas (e rentáveis) do país, mas também tem uma legião de detratores. Cada frase que diz é imediatamente transformada em gafe na web. Ela também nutriria uma intensa rivalidade com Ivete Sangalo, de quem sempre levaria a pior.
 
Tampouco foi propício o tal do livro prever uma tiragem limitadíssima: apenas 2.000 exemplares (dos quais 900 seriam doados para bibliotecas e instituições). Pelo jeito, era para ser um “coffee table book” luxuoso. Um objeto de colecionador e um tesouro para os fãs.
 
Era, porque não vai ser mais. Claudia Leitte já desistiu do livro, assustada com a repercussão negativa. O pior é que nem se tratava de tanto dinheiro assim: R$ 356 mil são uma fortuna para uma pessoa física, mas bem pouco para a produção de qualquer projeto cultural.
 
A Lei Rouanet precisa ser melhor discutida por toda a sociedade. Ela tem pontos fracos, que de fato propiciam abusos. O Brasil deve encontrar uma maneira mais eficaz e transparente de custear sua cultura, sob a pena de submergir num mar de mediocridade.
 
Mas também é preciso evitar a histeria, e buscar mais informação. Claudia Leitte não cometeu nenhum crime, nem merece ser crucificada virtualmente. Só que pedir ponderação em tempos crispados como agora é mais inútil do que um livro de luxo.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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