Tony Goes

Humor negro da série 'Insatiable' não cai bem nos dias de hoje

Campanha online pediu cancelamento do programa

atrizes Debby Ryan e Alyssa Milano
As atrizes Alyssa Milano (à esq.) e Debby Ryan, da série 'Insatiable', já disponível na Netflix - Kyle Grillot/AFP
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Há pouco mais de um mês, a Netflix divulgou na internet o trailer de “Insatiable” (“insaciável”, em português), uma série cômica protagonizada por uma adolescente obesa que sofre bullying na escola. Depois de perder peso e se tornar uma beldade, ela resolve se vingar de seus algozes.

Foi o que bastou para gerar uma onda de protestos. Sem ter visto um único episódio da atração, mais de 200 mil pessoas assinaram uma petição online exigindo que a Netflix cancelasse “Insatiable”. A série, segundo elas, seria gordofóbica, ao reforçar o padrão vigente de que só a magreza é bonita e desejável.

A Netflix ignorou as reclamações e disponibilizou a primeira temporada de “Insatiable” no dia 10 de agosto, conforme o previsto. A crítica foi impiedosa: quase todas as resenhas falam mal do programa. Os personagens seriam mesquinhos, a trama não transmitiria valores positivos, as piadas soariam cruéis e despropositadas.

De fato, quase ninguém presta em “Insatiable”. Patty (Debby Ryan), a ex-gorda, tem agora por objetivo de vida ganhar o maior número possível de concursos de beleza. Bob Armstrong (Dallas Roberts) é seu mentor nesta empreitada: um homem afeminado, vaidoso e fútil - que, no entanto, faz o maior sucesso entre as mulheres. Ao redor da dupla gravitam rivais histéricas, mães descompensadas e rapazes tarados.

Toda a ação se passa em dois dos ambientes mais competitivos do planeta: a “high school” americana (equivalente ao ensino médio brasileiro), com seu sistema de castas, e as inacreditáveis competições de jovens misses, que jogam as garotas umas contra as outras.

Há uma única personagem com profundidade: Nonnie (a excelente Kimmy Shields), a melhor amiga de Patty, que aos poucos admite para si mesma que é lésbica. Todos os demais têm bons motivos para serem do jeito que são, mas ninguém parece interessado em se emendar ou em evoluir.

“Insatiable”, na verdade, é uma série carregada de ironia. Patty emagrece, mas não conquista a felicidade por causa disso. Pelo contrário: a magreza faz com que tudo o que há de ruim dentro dela venha à tona. Uma concorrente de um dos concursos de que Patty participa a adverte: não adianta nada ser bonita por fora e feia por dentro.

Mas esta mensagem está no sexto episódio. Antes disso, há muito humor negro, insinuações sexuais, humilhações, agressões verbais e até violência física. Tudo o que os santinhos da internet acham que deveria ser varrido não só do mundo, como também da ficção.

A graça de “Insatiable” ainda tem um obstáculo autoinfligido pela frente: a duração excessiva dos episódios. Alguns chegam a quase uma hora, o que é demais para uma série cômica. Se fossem mais curtos, os capítulos seriam mais eficazes e engraçados.

De qualquer forma, vivemos tempos curiosos. Graças aos avanços da medicina, nunca houve tantos ex-gordos: entre as celebridades nacionais, os casos mais notórios são André Marques e Leandro Hassum. Ao mesmo tempo, existe um movimento extremamente positivo que prega a aceitação de todo tipo de corpo.

Também não lidamos bem com o sarcasmo, e entendemos tudo ao pé da letra. Nuance, duplo sentido, subtexto, tudo isso passa batido nos dias de hoje.

E assim, uma série divertida como “Insatiable” é vista como parte do problema. Mas não é: trata-se, na verdade, de uma sátira impiedosa ao mundo de aparências em que vivemos. Exatamente o contrário do que a acusam muitos de seus detratores.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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