Quem acha que só ator trans pode fazer personagem trans não sabe o que é teatro
O teatro brasileiro foi sacudido por uma polêmica nesta primeira quinzena de janeiro. O monólogo "Gisberta", que há quase um ano vem excursionando pelo Brasil, foi alvo de protestos de ativistas transexuais e travestis ao reestrear em Belo Horizonte, no dia 05/01.
O motivo? O ator Luís Lobianco, que não só atua como concebeu e produziu o espetáculo, é cisgênero - ele se reconhece como sendo do mesmo gênero em que nasceu, o masculino.
Portanto, segundo os manifestantes, não poderia interpretar o personagem-título de sua peça, baseada na história real de uma transexual brasileira que foi assassinada em Portugal há cerca de dez anos. Lobianco, conhecido do público por suas participações em vídeos do grupo Porta dos Fundos, seria transfake.
Transexuais e travestis estão entre os segmentos mais discriminados do mundo. No Brasil, são assassinados, perseguidos e marginalizados. Mas tanto sofrimento não dá a eles o direito de redefinir o que seja teatro.
Pois teatro é a arte do "fake". É representação, é fingimento, é mentirinha. É se fazer passar pelo que não se é. A imensa maioria dos atores escolheu esta profissão tão difícil, de sucesso tão raro, pela possibilidade de viver muitas vidas numa só.
Por isto, deveria ser óbvio que um ator cis pode, sim, interpretar um personagem trans. Aliás, qualquer ator pode interpretar qualquer coisa. Rico, pobre, bandido, mocinho, cachorro, cadeira, vapor. Ser no palco aquilo que não se é na vida real é uma das premissas básicas das artes cênicas.
Teatro não é documentário, nem tem por único objetivo promover a visibilidade ou a inclusão de quem quer que seja. Reduzir o teatro ao "lugar de fala" e outros conceitos pseudomodernos é cercear a arte e tentar controlá-la. Igualzinho ao que o MBL fez com a exposição "Queermuseu".
Além do mais, o Coletivo T e outras entidades que reclamaram de Lobianco ignoram o trabalho de atrizes transexuais como Nany People e Maria Clara Spinelli (a Mira da novela "A Força do Querer"), que vêm fazendo papéis de mulheres cisgênero com o maior talento e competência, nos palcos e na TV.
O mais chocante é que uma das fundadoras do Coletivo T é Renata Carvalho. Ela é a atriz transexual que interpretou Jesus Cristo na peça "O Evangelho Segundo Jesus, a Rainha do Céu", que teve apresentações proibidas pelo poder público em algumas das cidades por onde passou.
Jesus, até onde sabemos, era um homem cis. Como que uma atriz trans se acha no direito de encarná-lo, e nega um personagem trans a um ator cis? Como, aliás, que uma artista que sofreu censura agora prega a censura a outro artista?
É cada vez mais que comum que militantes inflamados ataquem aliados próximos, ao invés de focar em seus verdadeiros adversários. Um exemplo recente foi a revolta de ativistas negros contra a série "Sexo e as Nega" (Globo, 2014), pelo simples fato do autor, Miguel Falabella, ser louro de olhos azuis. Falabella se irritou tanto com os ataques que sofreu nas redes sociais que o único programa com quatro protagonistas negras da TV brasileira teve apenas uma única temporada.
Algo parecido está acontecendo com "Gisberta". Em vez de se voltar contra políticos e religiosos que combatem a chamada ideologia de gênero, a militância trans implica com um simpatizante da causa como Luís Lobianco (que, além do mais, é gay assumido).
O ator não precisa que ninguém o defenda: ele mesmo já fez isto, em seu perfil no Facebook. Mas o teatro e a liberdade de expressão precisam, sim, de toda a defesa que puderem ter. Nesses tempos bicudos, querer limitar a arte é fazer o jogo do inimigo. É dar um tiro no próprio pé.
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