Tony Goes

Por que quase não há negros no elenco de 'Deus Salve o Rei'?

Catarina (Bruna Marquezine) e Constantino (José Fidalgo)
Catarina (Bruna Marquezine) e Constantino (José Fidalgo) - Divulgação/Globo
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"Deus Salve o Rei", a nova novela da faixa das 19h da Globo, estreou na semana passada conquistando a admiração do público e da crítica. A produção impecável não fica nada a dever às séries internacionais de temática semelhante.

A trama de Daniel Adjafre se passa na Idade Média, sem, no entanto, especificar uma data precisa. Isso deu liberdade aos figurinistas para criar roupas que não pertencem a nenhum período específico, mas ajudam a compor os personagens --como, pro exemplo, o vestido com detalhes metálicos da princesa Catarina (Bruna Marquezine).

A geografia também é fictícia. A história se passa nos reinos imaginários de Artena e Montemor, cujas paisagens espetaculares foram criadas em computador, combinando imagens de lugares diferentes.

No entanto, na hora de escalar o elenco, a novela preferiu se ater ao rigor histórico. Montemor e Artena supostamente se localizam na Europa, apesar de o nome do continente jamais ser dito em cena. E na Europa medieval, anterior à descoberta da América e à escravização dos povos africanos, de fato havia pouquíssimos negros.

Talvez por isso haja uma única personagem negra em "Deus Salve o Rei": uma mulher que vive isolada na floresta, com o sugestivo nome de Mandingueira (Rosa Marya  Colin). Curandeira e vidente, ela não escapa aos papéis estereotipados que cabem aos atores negros na nossa teledramaturgia.

Vou fazer uma provocação: se Artena e Montemor nunca existiram, se a novela se dá a liberdade de fantasiar a Idade Média, por que não estender essa licença poética à escalação do elenco?

Os reinos de “Deus Salve o Rei” poderiam ser povoados por gente de todas as cores. Qual a explicação para isso? Não sei, talvez a localização geográfica. Ou talvez nenhuma explicação. Que tal?

Infelizmente, os elencos "color blind" --em que a raça do ator não importa-- ainda são raríssimos. No cinema, só me lembro de um caso: o filme "Muito Barulho por Nada" (dirigido por Kenneth Branagh em 1993, adaptado de uma peça de Shakespeare), em que um dos príncipes era feito por Denzel Washington.

 

No teatro esses elencos são mais comuns, se bem que no exterior. Agora mesmo está sendo montada em Londres uma versão para o palco do filme "Fanny & Alexander", de Ingmar Bergman. A trama continua se passando na Suécia de 1900, mas Fanny é interpretada por uma atriz-mirim negra.

Minha sugestão não tem a ver com sistema de cotas ou qualquer demanda por representatividade. Simplesmente, como espectador, não quero ser privado do talento de algum ator só porque ele não é branco.

Talvez seja um pouco demais exigir essa sofisticação da TV aberta brasileira. Será que a audiência não iria estranhar? Será que "Deus Salve o Rei" não ficaria com cara de metáfora do Brasil, coisa que a novela não pretende ser?

Não sei, mas a pergunta fica no ar. Afinal, se existe gente que fala com indisfarçável sotaque carioca em Artena e Montemor, bem que poderia haver negros e pardos nesses países de faz-de-conta.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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