Tony Goes

No Brasil de 2017, Ney Matogrosso é homofóbico e Chico Buarque é machista

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Não é novidade que estejamos vivendo tempos polarizados. E a internet, que poderia servir como um fórum de discussão, acaba contribuindo para acirrar nossas divisões.

Uma frase fora do contexto é o suficiente para se abram as portas do inferno. A incapacidade de perceber uma ironia também faz com que muitos entendam tudo pelo valor de face, levando os possuídos pela ira santa a cometer notórias injustiças.

Nas últimas semanas, dois medalhões da nossa música popular foram atacados por, supostamente, terem aderido a valores opostos ao que sempre representaram.

No dia 19 de julho, a Folha publicou uma longa entrevista com o cantor Ney Matogrosso. O título escolhido pelo jornal para a reportagem era dos mais chamativos: "Que gay o caralho, eu sou um ser humano". Mas quem lesse o texto com atenção perceberia que Ney não estava rejeitando a própria homossexualidade, e sim se recusando a ser definido apenas como gay.

Mesmo assim, houve quem se indignasse. Como o cantor e compositor Johnny Hooker, que publicou um post em seu perfil no Facebook onde dizia, entre outras coisas, que “é inconcebível ler a frase (...) no país que mais mata LGBTs do mundo”.


Aí, sim, a polêmica pegou fogo. Não faltou quem saísse em defesa de Ney, lembrando que ele surgiu com o grupo Secos e Molhados, em 1973 --em plena ditadura militar (1964-1985)-- e que jamais esteve no armário. Como disse um internauta, “Ney não precisa levantar bandeira nenhuma: ele é a própria bandeira”.

Johnny Hooker apagou a postagem, mas reiterou sua opinião em diversas entrevistas. E boa parte de seus fãs continua achando que Ney é quem deveria se retratar, ignorando a trajetória de um artista realmente subversivo.

Há poucos dias surgiu outra controvérsia, desta vez envolvendo Chico Buarque e sua faixa recém-lançada, "Tua Cantiga". A música, de fato, não é das melhores: tem uma melodia chatinha e uma letra que abusa de termos e figuras de linguagem algo datados.

Mas o que de fato feriu sensibilidades foram as estrofes "Quando teu coração suplicar / Ou quando teu capricho exigir / Largo mulher e filhos / E de joelhos / Vou te seguir".

Um homem que abandona os próprios filhos é o terror de qualquer mulher. E as de hoje, mesmo se estiverem apaixonadas por um sujeito casado, não sonham com que ele largue a família por elas. Ninguém quer carregar esta culpa.

Espalhou-se que Chico teria escrito a letra de "Tua Cantiga" para sua namorada atual, a advogada Carol Proner. Então, concluiu-se, ele seria mesmo capaz de cometer tamanha atrocidade!

Chico Buarque separou-se de sua única esposa, Marieta Severo, há mais de duas décadas, e não consta que tenha abandonado as três filhas. Ou seja, tal arroubo poético não bate com sua biografia.

Quem o critica também esquece que Chico muitas vezes escreve para um personagem, mesmo que a canção não faça parte da trilha de uma peça ou filme. Ainda assim, há quem acredite que a chauvinista “Mulheres de Atenas” traduza fielmente seu pensamento.

Ney Matogrosso e Chico Buarque já passaram dos 70 anos. Não estou dizendo que, por causa da idade, deva-se perdoar qualquer coisa que eles digam. Só que é ridículo esperar que estejam sintonizados com as cobranças das novíssimas gerações.

Por outro lado, é saudável questionar a obra de qualquer artista, mesmo os mais consagrados. Mas um pouco de contextualização, senso histórico e habilidade de captar nuances só ajudam no debate.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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