Tony Goes

Novela "Gabriela" é mais feminista que o livro

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Finalmente tomei vergonha na cara e resolvi ler "Gabriela, Cravo e Canela", o mais famoso romance de Jorge Amado. Óbvio que fui estimulado pela nova versão televisiva da obra. Antes eu já tinha visto a novela de 1975 e também o filme de 1983, dirigido por Bruno Barreto. Agora as diferenças entre a história no papel e nas telas estão ficando claras para mim.

O drama de Lindinalva, por exemplo, só existe na TV. A moça de família que acaba se prostituindo é uma invenção de Walcyr Carrasco. Aliás, o próprio cabaré Bataclan não tem no livro a importância que ganhou nas duas adaptações da Globo.

Os tempos são diferentes: no romance, dona Sinhazinha e o doutor Osmundo são assassinados no mesmo dia em que Nacib contrata Gabriela. As fisionomias também: Jorge Amado descreve a esposa adúltera do coronel Jesuíno como "morena, mais para gorda", algo bem distante do biótipo de Maitê Proença.

Mudanças como essas são normais e até necessárias na transposição de um veículo para o outro. Mas um aspecto me chamou a atenção: a "Gabriela" que está no ar carrega nas tintas feministas, muito mais que a do texto original.

Não que esta preocupação não surja nas páginas de Jorge Amado. "Gabriela, Cravo e Canela" foi o primeiro livro que ele escreveu depois de se desfiliar do Partido Comunista, mas os ideais igualitários do autor continuavam intocáveis.

Também foi seu primeiro livro com nome de mulher, abrindo o caminho para Dona Flor, Teresa Batista e Tieta do Agreste.

Crédito: Estevam Avellar/TV Globo Gabriela (Juliana Paes) e Nacib (Humberto Martins)
Juliana Paes e Humberto Martins na pele dos personagens Gabriela e Nacib em cena do remake da Rede Globo

Assim como na TV, Gabriela não é a protagonista absoluta do romance. Amado pinta um panorama riquíssimo da Ilhéus dos anos 20, com dezenas de tramas paralelas e distintos pontos de vista. Esta complexidade foi bem traduzida tanto na novela de Walter George Durst, de 75, quanto na atual (já no filme, nem tanto).

Mas a luta pelo controle político da cidade caiu para segundo plano na telinha. O embate entre o velho e o novo, representado por Ramiro Bastos e Mundinho Falcão, ainda não começou para valer.

O que predomina são as narrativas de opressão da mulher. Jerusa, Lindinalva, Sinhazinha, Glorinha, as quengas, todas elas sofrem, em diferentes graus, sob o jugo machista que vigorava na época. Só duas personagens femininas são razoavelmente livres: Malvina (a liberdade do intelecto) e a própria Gabriela (a liberdade do corpo).

É uma traição a Jorge Amado? Não, é só uma adaptação, talvez inevitável. Todas as novelas de hoje em dia pendem para a mulherada, que ainda compõe a maior parte de seus públicos.

Além disto, o processo de emancipação da mulher está longe de acabar. Apesar dos avanços, elas ainda ganham menos que os homens e não tem os mesmos direitos no amor e no sexo. Enquanto ainda houver preconceito, a discussão na TV é sempre bem-vinda.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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