Tony Goes

A guerra santa da Record contra o "cai-cai"

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Tomei uma dose extra de pachorra e me sentei à frente do computador para assistir à "Grande Reportagem" exibida pelo "Domingo Espetacular" da Record, no último dia 13. Porque ela é grande mesmo: são quase 40 minutos ininterruptos, praticamente o equivalente a um "Globo Repórter" sem intervalos comerciais.

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A esta altura todo mundo já sabe que o assunto em foco era o "cai-cai", o termo pejorativo que a emissora escolheu para se referir ao "cair no espírito" - o desmaio místico que os fiéis de algumas denominações evangélicas experimentam durante os cultos. Um transe provocado pelo Espírito Santo, dizem os crentes; pura embromação, revida a TV ligada a Edir Macedo.

O Twitter explodiu em reações contrárias, e Silas Malafaia, com sua delicadeza habitual, gravou um vídeo atacando a Record. Estamos assistindo a uma guerra entre líderes evangélicos, e a razão é óbvia: o IBGE apontou, nos dados de seu último censo, que a Igreja Universal do Reino de Deus perdeu nada menos do que 24% de seu rebanho entre 2003 e 2009.

Ou seja: mesmo com seu império midiático, a IURD manteve apenas três de cada quatro fiéis conquistados no início da década passada. É uma sangria e tanto. O mesmo recenseamento aponta que estas ovelhas desgarradas não migraram apenas para as denominações rivais. Muitas se tornaram "freelancers", sem ligação formal a nenhuma igreja, muitas vezes frequentando os cultos de várias delas ao mesmo tempo.

Há tempos que se sabe que há uma disputa ideológica pelo controle da programação da Record. Parte da direção da emissora defende uma linha mais "secular" como arma na conquista da audiência. Outra parte prefere que a relação entre o canal e a IURD seja ainda mais nítida, com programas religiosos invadindo o horário nobre.

Foi esta última facção que venceu o embate no domingo passado. A "Grande Reportagem" teve pouco de jornalismo e muito de propaganda, para não dizer pregação. As mesmas imagens foram repetidas inúmeras vezes, especialmente as mais grotescas - onde fiéis de igrejas americanas apareciam andando de quatro e uivando como cães.

Os depoimentos também foram escolhidos a dedo: só de gente "desiludida" com o "cai-cai". Ninguém do outro lado foi procurado, quebrando assim a regrinha mais básica do bom jornalismo. E tudo isto ao som de uma trilha bombástica, que insinuava espantosas revelações a qualquer momento.

Claro que elas não vieram. O "cair no espírito" é até bastante inofensivo: seja ele de origem divina ou fruto da auto-sugestão, não se conhecem vítimas de ferimentos graves. A maioria dos fiéis parece apreciar a intensidade da experiência. Além do mais, a busca pelo êxtase é uma constante nas vertentes de muitas religiões, dos católicos carismáticos aos dervixes muçulmanos.

Ao se propor a "desmascarar" o "cai-cai", a Record envereda por um caminho perigosíssimo. Para um não-crente, esta nem de longe é a prática mais questionável das igrejas evangélicas. Quando ataca diretamente suas rivais (apesar de não citar nomes), a IURD expõe um flanco vulnerável, que pode por em risco todo o movimento pentecostal, tanto o neo como o antigo.

Esta guerra está só começando, e vai sobrar tiro para todo lado.

Tony Goes

Tony Goes (1960-2024) nasceu no Rio de Janeiro, mas viveu em São Paulo desde pequeno. Escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. Ele também atualizava diariamente o blog que levava seu nome: tonygoes.com.br.

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