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Thiago Stivaletti

'Renascer': Globo está exagerando nos 'merchans' na reta final da novela

Emissora chega a fazer duas ações comerciais no mesmo capítulo, e um personagem retornou à trama apenas para fazer propaganda

Cena de recente comercial inserido na trama de 'Renascer' com os personagens Teca e Pitoco - Globoplay
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Teca, a mãe da criança herdeira de José Inocêncio, presenteia seu amigo Pitoco com um kit do Boticário. O rapaz acaricia a caixa como se dentro houvesse um colar de diamantes, e a câmera dá um close nos três produtos da marca.

Norberto, o dono do bar local, exibe uma garrafa grande de Coca-Cola para a câmera e diz ao amigo Rachid: "Essa daqui, ó, é da retornável! Depois que acabar, você devolve a garrafa e só paga pelo líquido!". Enquanto isso, Rachid e Dona Patroa enfeitam o carro que levará os noivos Zé Augusto e Buba com dezenas de latinhas de Coca.

Reza uma antiga frase do show business que a literatura é a arte do autor, o cinema é a arte do diretor, o teatro é a do ator, e a televisão... é a arte do patrocinador. Essa festa do merchandising —ou simplesmente "merchan", como se diz no mundo da TV— não está rolando no Leblon de Manoel Carlos ou na São Paulo de Silvio de Abreu, mas na Ilhéus de Benedito Ruy Barbosa e seu neto Bruno Luperi. Na nova Globo, uma novela ambientada numa fazenda de cacau e numa pequena vila rural do sul da Bahia não é mais impedimento para anunciar qualquer produto que seja.

O exemplo mais ostensivo aconteceu no capítulo da última segunda, quando o publicitário Eriberto (Pedro Neschling) viajou do Rio à Bahia a bordo do novo carro elétrico da BYD. A cena começou mostrando o painel digital do novo modelo, no qual ele tentava fazer uma ligação para Kika. Depois de a marca aparecer bem visível no volante, uma bela panorâmica mostrou o carro rodando por uma estrada de terra –não dava pra ver a diferença das imagens que vemos no intervalo comercial.

Personagem-merchan

E a coisa continuou nos diálogos. Ao encontrar Kika, o publicitário diz em alto e bom som, de dentro do carro: "Sou eu, em carne, osso e 235 cavalos de potência. Presta atenção no barulho! Não tem! É a cavalaria mais silenciosa que eu já vi. E eu não vou nem falar da autonomia, amor! Eu vim de São Paulo até a Bahia e só precisei parar uma vez, acredita?! Vou procurar uma tomada para deixar ele carregando e já volto..."

Eriberto é o exemplo vivo dessa nova fase: um personagem movido a merchan. Desde que se livrou de Eliana, o rapaz sumiu da novela, e agora engatou um improvável interesse em Kika, ex de Zé Bento. Sua desculpa para chegar na fazenda de Zé Inocêncio a bordo do novo carrão foi grudar na nova amada. Quando o coronel lhe pergunta "E você, pretende ficar aqui até quando?", por um momento achei que a resposta fosse "Até a BYD pagar o merchan da volta".

A publicidade vem invadindo as novelas nos mais diversos formatos. Já há alguns anos, desde a pandemia, o espectador da Globo se acostumou com a vinheta "No capítulo anterior...", que termina com "Em 30 segundos, fique com o capítulo de hoje". Nesses 30 segundos, uma inserção comercial. Também está em teste uma nova ação em que os atores fazem um merchan dentro de uma novela; entra a vinheta chamando o comercial; e os mesmos atores aparecem no primeiro anúncio do intervalo comercial, dando continuidade à propaganda.

Nova abertura

As cenas de merchan dentro da novela, que misturam a ficção dos personagens com publicidade, há tempos ganhou um nome no mercado: "product placement", ou inserção de produtos. Nos EUA, há dezenas de agências especializadas em criar um conteúdo que se encaixe de forma "orgânica" em filmes, séries e reality shows. O trabalho envolve roteiristas de um lado e publicitários do outro.

No Brasil, esse mercado está apenas dando os primeiros passos. OK, espectador de TV é um bicho doutrinado, que se acostuma com (quase) qualquer coisa. Mas convém não exagerar: para manter a elegância, a emissora poderia se ater a um merchan por capítulo, no máximo.

Quando são dois no mesmo dia, como aconteceu na última quinta (8) com os anúncios de Boticário e Coca-Cola, mesmo o mais desavisado dos espectadores sente a mão pesada —e a dupla ação pode causar mais rejeição do que vontade de comprar os produtos.

Para não dizer que as novas estratégias visam apenas enfiar produtos goela abaixo do espectador, "Renascer" também está servindo de plataforma para aquilo que poderíamos de chamar de "publicidade do bem". Numa ação de merchandising social, a novela deu uma aula ao público sobre crianças intersexo, que nascem com a chamada genitália ambígua.

Buba e Zé Augusto, pais da criança gerada por Teca, citaram a Abrai (Associação Brasileira Intersexo). E no capítulo de 12 de junho, o Boticário apresentou uma campanha de sustentabilidade "invadindo" a abertura da novela, que teve suas imagens trocadas por outras de desmatamento e poluição do planeta, com uma mensagem na tela ao final e o link do projeto.

Gostemos ou não, os novos caminhos da publicidade nas novelas vieram para ficar. Mas convém ficar alerta para que as ações se mantenham num trilho aceitável, sem comprometer o conteúdo principal.

Thiago Stivaletti

Thiago Stivaletti é jornalista e crítico de cinema, TV e streaming. Começou a carreira como repórter na Folha de S. Paulo e foi colunista do portal UOL. Como roteirista, escreveu para o Vídeo Show (Globo) e o TVZ (Multishow).

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