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Krishna Mahon
Descrição de chapéu Sexo casamento

Um pé no fetiche dos outros

Talvez por ser pouco apreciada, a podolatria não sofre tanto preconceito

Aglomeração involuntária. Aquarela da série Ancestralidade (Foto: Bianca Aun e Ilustração de Julia Panadés) - Instagram/@panadesjulia
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Sabe quando a gente vai sentir a temperatura da água da piscina e molha só a ponta dos pés? Para falar de fetiche é melhor a gente começar por baixo.

Outro dia um cara ofereceu dinheiro para ver a sola do tênis com que eu estava correndo. Sim, pediu uma foto só da sola. Custei a entender que não era o pé e que isso não era desculpa para ver o resto, para pedir um nude, sei lá. Já comentei aqui na coluna que clamam por um OnlyFans meu, né? Então, tem de tudo, inclusive no terreno das ofertas financeiras. Nunca aceitei nenhuma, só que essa me fez titubear. Afinal, era só a sola do tênis. Algo tão distante do meu desejo, que pulsa acima, longe dali.

Meu pé é infinitamente mais bonito que a minha cara. Infelizmente (suspiro dramático aqui). Alguns espectadores da Band tiram fotos da tela da TV e compartilharam entre os seus. Numa dessas, meu perfil do Instagram (@krishnamahon) foi marcado por alguns sites de podolatria. Resultado: seguidores podólatras, fascinados por qualquer pedacinho de pé que apareça nas fotos, e, também, a oferta para ver a sola do tênis; ah, e sem contar com os vários pedidos que me mandam para massagearem meu pé, porém isso, ao que me parece, não necessariamente é exclusivo dos podólatras, mas não há como negar que o aparecimento em massa deles enquanto seguidores tornou-se um catalisador em relação à frequência de pedidos.

Antes da Band só tinha recebido duas propostas financeiras sexuais. A última há quase 30 anos, quando um árabe ofereceu algumas centenas de pounds (libras esterlinas) para ver se uma pinta que eu tinha na bochecha era de verdade. Um dermatologista americano me fez tirar a pinta, sob protesto de família e amigos. Como a pinta era bonitinha, bem no meio da bochecha e marcava muito meu rosto, vovô sugeriu uma tatuagem. Obedeci depois que ele desencarnou. Pois o árabe queria chegar perto, passar a mão, e ter certeza que não era pintada. Negociou com meu ex. O machismo ali era tamanho que, claro, que quem permitiria ou não seria outro homem, né? Onde já se viu mulher dona do próprio corpo? Enfim, ficou sem saber.

A primeira proposta tinha acontecido muitos anos antes, quando eu nem tinha beijado na boca ainda. Devia ter 12 ou 13 anos, e um menino "mais velho", da sétima série, queria porque queria ver meus pés. Pediu inúmeras vezes, depois começou a oferecer dinheiro. Chegou ao equivalente a R$ 100 na época. Eu só podia comprar refrigerante e Mirabel (um tipo de biscoito waffer vagabundo) uma vez por semana, e mesmo assim não aceitei.

Até uns sete anos já tinha tido vontade de ser aeromoça, astronauta, chacrete e freira. Graças às deusas, encantamento é algo que nunca me faltou. Tenho curiosidade científica, quero entender do universo, das plantas, bichos, corpo humano e, claro, do ser humano. A gente é um bicho muito interessante. Daí zero surpresa que uma das minhas curiosidades sejam os fetiches alheios.

Uma das minhas melhores amigas diz há anos que pira em pé bonito, e eu tive um ex que ficava louco, mas ainda assim não entendi o rolê. Uma conhecida me disse que vende tênis e meias surrados no Enjoei e Mercado Livre, e tem certeza que só quem compra é fetichista. A pira é o cheiro, a forma, há alguma viagem com o pé sendo usado no ato sexual em si, ou eles são usados para tocar alguém?

Andei (sentido figurado aqui) perguntando no confessionário que se tornou meu Instagram e cada um respondeu uma coisa. Ou entre os podólatras não há consenso ou o desejo é livre mesmo; mas a única ligação para esse fetiche parece ser a localização, o alvo do desejo. Se descobrir algo mais eu conto.

A etimologia da palavra fetiche deriva do francês "fétiche", que significa amuleto. Objeto que se cultua por supostamente possuir um valor mágico ou sobrenatural; objeto com características mágicas. Na psicologia é objeto ou parte do corpo que pode ser erotizado para satisfazer os desejos de alguém.

Taí, meu pé é divino. O defunto do coelho, que teve e ainda tem sua patinha transformada num chaveiro mórbido sussurra: vai vendo.

Quem gosta de pé é pé quente (perdão, leitor, não me aguento). Talvez por ser uma iguaria pouco apreciada, a podolatria não sofre tanto preconceito quanto outros fetiches. Sim, quanto mais comum é o desejo, maior é o preconceito. Mas se o desejo ou a prática é feita entre adultos e em consenso, por que alguém seria contra?

Não vou nem falar do preconceito sofrido pela comunidade LGBTQIA+, do fato de o Brasil ser o maior consumidor de conteúdo trans do PornHub e ser o país que mais assassina essas pessoas, porque isso é tema para outra coluna. Mas se lembrar de cu...

O filósofo Spinoza diz que os homens lutam pela sua servidão como se lutassem pela liberdade. Já Deleuze e Guattari dizem que "o que é recalcado é a produção desejante". Contardo Calligaris, um dos psicanalistas mais fodas do Brasil (que não era brasileiro) e que também teve uma coluna na Folha, dá logo uma voadora esclarecedora: "querem proibir aos outros o que eles não conseguem proibir a si mesmos".

Depois de pisar com salto agulha na cara do homofóbico que estava lendo essa coluna desavisado, e antes de meter o pé (estou impossível hoje), a Phoda Madrinha deseja que você olhe para o seu desejo e que calce logo seu fetiche (e, se ele envolver sapatinho de cristal, calce-o literalmente!), mesmo que ele, para outras pessoas, pareça muito baixo.


PS1: Talvez eu deva vender a foto da sola do tênis de corrida, sapato surrado e meia furada, tudo.

PS2: Salto agulha é mais potente que botina porque como a gente que é curioso aprendeu em física, quanto menor a área, maior a pressão.

Krishna Mahon

Jornalista e cineasta indicada ao Emmy, é apresentadora do SexPrivé Club da Band. Foi produtora da Discovery e diretora de conteúdo do History.

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