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Zapping - Cristina Padiglione
Descrição de chapéu Rússia

Lucélia Santos leva ao palco gravação inédita de Chico Mendes

Atriz celebra 50 anos de carreira e reza pela Ucrânia, onde Isaura virou nome de várias mulheres

Lucélia Santos na peça 'Vozes da Floresta'
Lucélia Santos no espetáculo 'Vozes da Floresta', baseado em depoimento inédito de Chico Mendes - Divulgação
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Motivada pelo descaso do atual governo com o meio ambiente, e principalmente com o desprezo à memória do seringueiro Chico Mendes, líder sindical e ativista assassinado em 1988 em Xapuri, no Acre, Lucélia Santos retirou do baú pessoal um depoimento inédito que ela mesma gravou em fita K-7, com relatos do sindicalista, pouco antes de sua morte. O material vem sendo exposto pela primeira vez no espetáculo "Vozes da Floresta", em cartaz no Sesc Ipiranga, em São Paulo, até o fim de maio.

Aos 64 anos, a atriz guarda com perfeição a voz de menina e a silhueta mignon que conquistou o mundo como Escrava Isaura, a personagem fictícia brasileira mais popular do planeta. Pouco antes da pandemia, Lucélia esteve na Ucrânia, hoje dilacerada pela guerra movida pela Rússia, para gravar um documentário produzido pela BBC com quatro de muitas mulheres batizadas como Isaura por lá.

Também em função da escrava branca assediada e oprimida por Leôncio (Rubens de Falco na novela de Gilberto Braga adaptada em 1976 da obra de Bernardo Guimarães), Lucélia lançará em versão bilíngue, do português ao mandarim, um fotobook comemorativo por seus 50 anos de carreira, celebrados neste ano. O livro corre até o risco de ser lançado na China, onde ela já esteve por muitas vezes, antes de sair por aqui.

"Vozes da Floresta" também é parte da comemoração pelo cinquentenário de sua trajetória profissional, inclusive pelo fato de ela ser, como artista , uma vanguardista na militância ambiental, como mostra o depoimento que trazia guardado de Chico Mendes.

O espetáculo narra a história de resistência do movimento dos seringueiros acreanos. Da chegada dos latifundiários para desmatar a floresta nos anos 1970 ao assassinato de Chico Mendes, em 22 de dezembro de 1988. A obra se dá a partir da trajetória do líder sindicalista e ambientalista, contada por ele próprio a Lucélia em maio de 1988, quando visitou o Acre pela primeira vez, a convite de Mendes.

Com dramaturgia da antropóloga, jornalista e escritora Zezé Weiss, revisão de Gomercindo Rodrigues, companheiro e amigo pessoal de Chico Mendes, a peça intercala os áudios de Mendes com a narrativa de três mulheres fortes e essenciais para a resistência na floresta: a pioneira Valdiza Alencar, seringueira do Vale do Acre, berço dos embates de derrubadas; a matriarca do Seringal Cachoeira, Cecília Mendes, tia de Chico Mendes; e a própria Lucélia Santos, ativista em defesa dos povos da floresta há mais de três décadas.

Confira a seguir a nossa conversa por videoconferência, dividida por temas.

A PEÇA: 'VOZES DA FLORESTA'

"É um depoimento do Chico Mendes contando pra mim, em 1988, tudo o que acontecia no Acre, desde a fundação dos primeiros sindicatos de seringueiros. Essa entrevista do Chico tem 34 anos e eu fiz em fita K-7, num gravadorzinho, quando eu encontrei com ele em Xapuri a primeira vez, e logo depois ele foi assassinado.

Eu nunca mais mexi nesse material porque eu não conseguia. Eu tinha um luto que era uma mistura de revolta, perplexidade, dor, tristeza da perda, eu nunca consegui ouvir a voz do Chico esses anos todos.
Quando o Bolsonaro assumiu, e esse inominável [Ricardo Salles], numa entrevista ao Roda Viva, falou assim ‘Chico Mendes? Eu nem sei quem é Chico Mendes. O que importa isso agora? Isso é irrelevante'. Eu disse: 'não, o Chico Mendes não é irrelevante e esses caras vão fazer tudo o que prometeram durante a campanha. Tá na hora de tirar do arquivo aquele material e mostrar para as pessoas a verdadeira história do Acre, dos extrativistas e dos indígenas, e dos povos da floresta.'

Antes até do Bolsonaro assumir, em 2019, eu já estava querendo construir esse espetáculo. Tive dificuldade na estruturação, pra encontrar o autor correto, pra fazer uma narrativa adequada, que coubesse na dramaturgia, e documental, que é a voz do Chico, e aí demorou um pouco, aí veio a pandemia, demorou mais um pouco.

É uma metalinguagem entre cinema, documentário e teatro. Cinema na medida em que consigo expressar qualquer coisa no telão. Eu contextualizei documentalmente a fala do Chico, e paralelamente à fala dele, nós construímos os personagens que ele menciona, não exatamente fulano, fulano e fulano, mas a seringueira sindicalista, a família Mendes, e a história no seringal Cachoeira, onde ele viveu e que está lá até hoje."

À GERAÇÃO DA GRETA

"É bem bonito, o espetáculo, é bem emocionante, é bem visceral, e sobretudo no contexto do Brasil de hoje. A violência de que eu falo na peça é vivíssima no Brasil. O país ganhou o prêmio mundial de maior devastador de florestas do planeta. A peça não poderia ter vindo num momento mais adequado, ela é totalmente up to date, o que a gente está falando é super importante, por mais que doa, por mais que as pessoas não queiram. Eu termino o espetáculo com uma lista da anistia internacional com 200 ou mais nomes de indígenas, camponeses, lideranças indígenas, ambientalistas, gente sem terra, gente do agroflorestal, que são assassinadas todos os dias.

Eu não estou inventando, não estou aumentando, estou contando. Quero rodar o Brasil inteiro com a peça, eu quero que as pessoas vejam esse espetáculo, especialmente jovens, especialmente quem tem 14 anos, que tem que ter a consciência do meio ambiente, a turma da Greta Thumberg, é esse o público que eu quero atingir. Eles tem que conhecer a história do Brasil, eles tem que entender que tem gente que luta por essa questão há quase 40 anos."

CENAS DE CRIME


"Eu trabalhei com o Chico, estou envolvida até a raiz do meu cabelo na defesa da Amazônia há quatro décadas. São 40 anos que a gente luta por essa floresta em pé, sem nenhum exagero, e é muito difícil porque é muito pesado, porque envolve assassinatos, crimes, agressões e violência, em tudo o que diz respeito a reforma agrária na Amazônia, que envolve terras indígenas. Querem arrancar constitucionalmente dos indígenas o que eles têm por direito inalienável.

Especialmente agora, neste governo, porque eles estão determinados a acabar com tudo. Se eles conseguirem destruir todos os povos indígenas, é um avanço para o agronegócio, para o que eles consideram um desenvolvimento ideal para o Brasil, onde alguns poucos empresários e banqueiros lucram, e o capital internacional lucra barbaramente, contra a cultura brasileira."

DOCUMENTÁRIO


"O próximo passo seria transformar isso em documentário. Não consigo ainda visualizar um formato pra ele. Eu tenho, para além do que está sendo visto no espetáculo, que são cinco temas que ele aborda, tanto quando explica a formação dos sindicatos, depois quando ele aborda a questão dos embates, que era a metodologia de enfrentar jagunços e motosserra. Tem a união dos povos da floresta, o primeiro congresso nacional, a aliança nacional de indígenas e seringueiros, que desfez uma luta histórica de um conflito que existia entre eles, que foi consolidado. Isso em 89, um ano depois de o Chico ser assassinado. O Chico trabalhou nisso a vida inteira.

Depois da morte dele, isso aconteceu: a Aliança dos Povos da Floresta, com articulação do Ailton Krenak, da parte do Conselho Nacional Indígena. Eu quero fazer um documentário sobre isso. Eu não sei se seria um documentário dramático, tipo a gente filmando como cinema a história da Valdiza [personagem da peça]. Eu fui lá, onde a dona Cecília viveu até o ano passado, onde o Chico vivia, o seringal da família dele.

Ou a gente faz uma coisa dramática cinematográfica, com os personagens, ou a gente pode fazer discussão de documentário que é um pouco o que já tá feito no telão da peça, só ampliando isso e desenvolver mais, sobre como começou essa luta. E aí a TV Sesc certamente teria condição de produzir."

MÍDIA E AMAZÔNIA

"Eu fico muito chocada que as mídias não estão conseguindo alcançar o nível da miséria brasileira, na Amazônia. O que eu chamo de miséria é a invasão dos garimpeiros, é a invasão dos madeireiros, os assassinatos, violentações, crimes, mercúrio no rio, exploração clandestina e ilegal de madeira. O Brasil não está informado! Porque o povo brasileiro deveria querer defender o que é seu, e não existe, como você falou, essa conexão de que ‘isso é meu’.

É sobre isso que a peça fala, sobre esse sentimento de Brasil. Brasil, pra mim, é igual à Amazonia, e tenho falado isso pro pessoal da política: o governo que vai assumir agora essa história aqui tem que ter consciente que a governança tem que começar por lá. Tem que mudar o eixo das prioridades. Não é São Paulo/Rio de Janeiro/Brasília que deve estar na ponta da lança internacional de uma discussão planetária, é a Amazônia.

Só quem vir isso vai conseguir virar o jogo, senão vamos seguir nessa roda trágica, porque a ganância, por tudo o que há de riqueza ali dentro é algo acima do concebível."

50 ANOS DE CARREIRA

"Tem um livro que eu quero lançar, seria pra esse ano. Não tá muito simples ter respostas imediatas dos gestores, dos patrocinadores, dos teatros. Eu gostaria de já sair do Sesc com uma boa agenda de Brasil, já queria começar a andar pelo Brasil, mas é muito difícil porque as respostas não vêm a tempo como a gente pretende que sejam.

O projeto dos 50 anos está pronto e é bem bonito. Envolve o lançamento de um fotobook contando para as pessoas a história da minha carreira através dos meus personagens --vividos no teatro, no cinema e na TV. Quase sem texto, mas um documento fotográfico. Esse livro seria lançado também na China, que até eu acho que lá está um pouco mais adiantado que no Brasil. Se a gente conseguir editar o livro em português e em mandarim, eu tenho condição de conseguir editar o livro lá, talvez, que é muito mais econômico.

Então, o lançamento do fotobook tá andando nesse paralelo de fazer bilíngue.

E tenho ideia de fazer a peça que nós montamos com uma exposição fotográfica, que talvez seja no próprio Sesc.

CELEBRIDADE NA UCRÂNIA & RÚSSIA

"Em 2018, veio ao Brasil um jornalista ucraniano chamado Dimitri Komarov. Ele tem um programa na televisão ucraniana de grande sucesso, é uma espécie de Luciano Huck, mas não é bem um Luciano Huck, ele pega muito a juventude, a garotada, adolescentes, mas ele faz um programa que ele viaja pelo mundo inteiro, com uma coisa de aventura, de curiosidade.

Ele ficou sete meses no Brasil e fez 34 documentários aqui. Só na Amazônia ele passou uns três meses, e quando ele veio para o Rio, ele me procurou para fazer um documentário sobre o meu sucesso na Ucrânia, onde tinha várias mulheres com o nome de Isaura, por causa da novela, e muitas curiosidades.

Aí ele me contratou, nós ficamos alguns dias aqui, eu fui com ele até as fazendas históricas de café, onde acredita-se que 'Escrava Isaura' e 'Sinhá Moça' tenham tido cenas. Eu não reconheci porque está tudo muito mudado, mas uma delas me parece realmente que é uma fazenda que eu gravei, mas não foi nem 'Escrava Isaura', foi 'Sinhá Moça'.

E aí a gente gravou um programa sobre mim. Acabamos ficando amigos, plantamos árvores juntos, as árvores estão enormes agora, eu fui lá ontem ver um abacateiro e uma mangueira que eu plantei pra minha neta e pra minha afilhada. Ele ficou meu amigo.

Quando a gente se despediu, ele disse: ‘você viria para a Ucrânia, me ajudar a lançar os filmes sobre o Brasil?’ Eu disse: ‘Claro que eu vou’. Feito. Em outubro de 2018, eu embarquei pra Ucrânia, eu viajei por essas cidades que estão sendo bombardeadas, eu conheci todos esses lugares, e a gente entrava nuns teatros e cinemas abarrotados de gente, sempre. Ele fazia o show que ele sempre faz, mostrando trechos dos documentários, umas piadinhas, depois ele conversa com o público, tirava foto com todo o mundo, crianças, e naquele ano, a grande surpresa era eu.

Então eu ficava meia hora no palco e ele me entrevistava, as pessoas me entrevistavam, foi um sucesso. A gente foi a todos esses lugares juntos, a gente ia pra montanha, pra praia, ou seja, eu criei muitos amigos na Ucrânia, toda a equipe que me acompanhou no teatro, na televisão, aos programas de TV que eu fiz.

A família do Dmitri, o irmão, a irmã, os sobrinhos, os pais dele. Resumindo: agora, em outubro, ele veio para cá com os pais dele, passaram o dia aqui em casa comigo, não tinha nenhuma fala sobre guerra na Ucrânia.

Corta.

De repente começa essa guerra. E eu fui pra Rússia no mesmo ano (2018), em dezembro, contratada pela TV BRICs, russa, eu sou embaixadora da TV BRICs da Rússia."

N.R: Apesar do grande sucesso de "Escrava Isaura" na Rússia e no Leste Europeu de modo geral, Lucélia nunca havia ido à Rússia ou à Ucrânia antes de 2018.

"Eu nunca havia ido. Eu ia com o Sarney [durante seu governo, de 1985-1989] no passado, mas por um problema diplomático eu não fui. Eu fui a primeira vez à Ucrânia, e fui à Rússia em seguida, em 2018. Eles ficaram com ciúme da minha passagem pela Ucrânia e me levaram em dezembro, no dia de Natal, eu fiz a festa da TV BRICs, lá em Moscou, quase 40 graus abaixo de zero. Nunca vi tanta neve.

GERAÇÃO DE ISAURAS

"Em fevereiro de 2019, eu voltei para a Ucrânia, a convite da BBC de Londres, que eles fizeram um documentário sobre essas Isauras, era Isaura Petrovka, todos esses nomes russos e ucranianos acompanhados de 'Isaura'. É muito doido. São várias Isauras. Eles pegaram quatro delas e fizeram um documentário. Eu fui de novo, fui a Kiev e a mais quatro cidades que eu não conhecia e que agora foram bombardeadas.

E fiz um programa pra BBC com essas Isauras, espero que elas estejam bem.

Então, desenvolvi um forte vínculo com a Ucrânia. Quando começou essa guerra, eu falei com o Dmitri, e ele assumiu essa postura de defesa do país. Ele está lá nas linhas de fronteiras, levando remédio, tirando velhos de porões, transportando crianças. A minha intérprete, a Olena, está fazendo um trabalho de militância de resgatar animais que são abandonados.

O Dmitri me pediu para gravar um vídeo, como o [Arnold] Schwarzenegger fez pra televisão russa, pedindo pro povo da Rússia interferir a favor do povo da Ucrânia. Eu fiz, não sei se ele usou porque depois não nos falamos mais.

Eu rezo todos os dias pra que essa guerra acabe o quanto antes, porque ela não é uma guerra entre os povos ucraniano e russo, é uma guerra de poder entre o Putin e o Biden, entre Otan e Putin, e as pessoas no meio disso, os jovens, os artistas, os profissionais de televisão, de teatro, os velhos, que estão entrando em depressão em porões, não pegam mais a luz do sol, as crianças... É uma tragédia burra, estúpida."

O QUE É QUE A ISAURA TEM?

"Não há nenhum personagem que tenha conexão cultural com tantas culturas, não há. Isso não sou eu quem diz, é a TV americana, ao tratar esse tema, dizendo que não havia nada como esse produto que foi feito no Brasil, levando em consideração que eles fazem aquelas séries como 'Dallas' e outras de sucesso mundial, é uma coisa que a novela tem, é um impacto, mesmo as outras novelas que eu fiz, ‘Sinhá Moça’, ‘Ciranda de Pedra’, que venderam muito.

Depois a Globo fez outras, sobre migração italiana, sempre vendem bem, têm grande sucesso, mas não gera essa coisa do inconsciente.

Eu acho que a explicação é a falha trágica, que rege em qualquer cultura, em qualquer época da história da humanidade, a relação entre opressor e oprimido. É isso que faz até hoje na Ucrânia, na Rússia, no Vietnã, no Tibet, na China, em qualquer lugar, Indonésia, em todos os lugares, a relação de um opressor e um oprimido. Essa falha trágica dessa relação é o que faz a escrava Isaura sempre sobreviver.

E vai ser sempre assim. Eu vou morrer, minha neta vai virar atriz famosa e ela vai lembrar a escrava Isaura da vovó Lulu."

*

(Em tempo: "A Escrava Isaura", produzida aqui em 1976, passou mais de 20 anos liderando a lista de produções exportadas pela Globo. Foi superada por "Terra Nostra" (1999), de Benedito Ruy Barbosa, cujo tema central, imigração, é também um assunto universal.

Hoje, "Avenida Brasil" (2012), de João Emanuel Carneiro, lidera o ranking de exportações da Globo, com venda para mais de 130 países. Mas como personagem isolado, não houve Carminha, Matteo ou Giuliana que superassem Isaura na comoção causada em países tão distantes da cultura brasileira.)

Zapping - Cristina Padiglione

Cristina Padiglione é jornalista e escreve sobre televisão. Cobre a área desde 1991, quando a TV paga ainda engatinhava. Passou pelas Redações dos jornais Folha da Tarde (1992-1995), Jornal da Tarde (1995-1997), Folha (1997-1999) e O Estado de S. Paulo (2000-2016). Também assina o blog Telepadi (telepadi.folha.com.br).

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