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Matt Kirkland, criador de “Drácula Daily”, em sua casa em Lawrence, Kansas Shawn Brackbill/The New York Times

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Madeleine Connors
The New York Times

Confinado pela pandemia à sua casa em Lawrence, Kansas, nos Estados Unidos, no verão de 2020, Matt Kirkland tirou de sua estante uma edição de bolso de "Drácula", de Bram Stoker, e decidiu reler o livro. "Estar aprisionado em um castelo, e tentando sair... com certeza senti que existiam fortes paralelos, ali", ele disse.

Kirkland lia o romance epistolar para sua filha de 11 anos. Ao ler, ele percebeu que as cartas do protagonista da história, Jonathan Harker, também eram datadas do verão. Ele começou a sincronizar as sessões de leitura com as datas das cartas, criando a sensação de que os eventos do livro estavam se desenrolando em tempo real, e intensificando o drama para sua filha, que lhe pedia atualizações diariamente.

No final do ano –porque a pandemia continuava a deixar muito tempo livre em sua agenda– Kirkland decidiu expandir a ideia, criando o "Drácula Daily", um boletim informativo que envia uma missiva de Harker aos assinantes da lista, seguindo a cronologia do livro. Kirkland organizou a ordem dos posts e começou a enviá-los aos assinantes em maio de 2021.

O conde Drácula —um recluso atormentado por anseios insatisfeitos, com uma aptidão macabra para o teatral e a solidão existencial— acabou se tornando um improvável santo padroeiro para o momento incerto que as pessoas viviam, disse Kirkland. O boletim se tornou um sucesso, e uma sensação na internet. Os assinantes descobriram que a distribuição dos trechos em forma seriada tornava o romance lançado 125 anos atrás mais acessível, e o método criou uma comunidade de leitores numa época em que muita gente estava em busca de conexão.

"Isso permitiu estabelecer uma relação com aquelas pessoas", disse a assinante Italia Gorski, sobre os personagens do livro. "E o método nos forçava a ir devagar, a esperar pelas atualizações em tempo real, o que tornava a história muito verdadeira".

As interpretações literárias de Drácula entre os leitores vão desde a análise retórica até memes do vampiro, disse Gorski. Para ela, o tipo de engajamento que a internet torna possível —memes e piadas curtas sobre crucifixos— pode deflagrar um pensamento tão crítico sobre o romance quanto a leitura de uma versão anotada.

"É interessante perceber até que ponto as pessoas se relacionam com os personagens do romance, em uma situação e sociedade muito diferentes das nossas", ela disse.

Naquele primeiro verão, o "Drácula Daily" atingiu a marca de 165,6 mil assinantes, que liam o romance juntos. Em sua segunda edição, que começou em 2022, o boletim já contava com 230 mil assinantes, e legiões de fãs devotados no Twitter, Tumblr e TikTok. Kirkland planeja continuar em 2023, começando em 3 de maio e enviando atualizações até 6 de novembro, a data da última carta, e também está pensando em divulgar outros romances clássicos em forma seriada.

Os leitores têm origens muito variadas, e incluem tanto novatos quanto conhecedores profundos de romances vitorianos, além de acadêmicos que oferecem insights sobre a era gótica, disse Lauren VanDenBerg, outra das leitoras do boletim. Para muita gente, ela disse, a diversidade de perspectivas e a chance de participar de discussões em grupo eram parte do atrativo.

"As pessoas estão compartilhando anotações ou lições que aprenderam em classe. Algumas pessoas parecem realmente interessadas no direito marítimo da era vitoriana", ela disse, acrescentando que a análise acadêmica ao lado do humor leve cria uma atmosfera convidativa para os leitores jovens.

"Alguém aparece e explica ou aponta algo que escapou à atenção do leitor", ela disse. "Isso torna muito mais fácil encarar a tarefa como um projeto e digerir o que está realmente acontecendo. É sempre divertido estar por dentro de uma piada".

Mas, para VanDenBerg, a verdadeira atração foi o lado exagerado e meio cafona do livro, que ela disse ter um encaixe perfeito com o Tumblr. Ela se inscreveu, disse, porque queria ver a reação ao inesperado caubói que aparece no romance.

Lauren VanDenBerg segura “Drácula”; assinantes descobriram que a serialização tornou o romance de 125 anos mais acessível - Desiree Rios - 14.set.22/The New York Times

Há um lado no conde Drácula com o qual é surpreendentemente fácil se identificar, segundo VanDenBerg.

"Temos Drácula correndo por todo lado e fingindo ser seus empregados, naquele castelo", ela disse. "E aí você descobre que era só ele fazendo tudo aquilo. Todos nós tentando ser mais cool do que realmente somos, às vezes, e todos os leitores pensam que, pois é, já tive momentos como aqueles".

Ashley Barner, assinante do boletim e escritora de fantasia, disse que a experiência de leitura coletiva era como fazer parte de um clube do livro online que nunca dorme. "Há um aspecto comunitário", ela disse. "É como assistir a um programa de TV em companhia de outras pessoas".

Leah Davydov, uma das vozes acadêmicas da comunidade "Drácula Daily", credita sua carreira acadêmica à sua obsessão vitalícia pelo conde. Enquanto buscava um doutorado em literatura inglesa na Universidade Case Western Reserve, Davydov foi apresentada ao boletim informativo por um de seus alunos. Ela reconheceu os atrativos do livro para uma ampla audiência, disse.

"É sobre Drácula sentir uma intensa solidão e um desejo de voltar a se juntar à humanidade", ela disse. "E Jonathan está ficando cada vez mais isolado e paranoico. Eu acho que isso se aplica a muitas obras da literatura gótica, em termos de confinamento e liberdade. Portanto, acho que o livro fala, de alguma forma, ao público pós-Covid".

Davydov aponta que a programação de leitura seriada do "Drácula Daily" espelha a prática do século 19, de publicar romances em episódios. "É apenas um pequeno mas maravilhoso capricho da história que tenhamos voltado a essa situação", ela disse.

Receber um e-mail com um par de parágrafos por dia também cria suspense e incentiva uma leitura atenta do texto, disse Davydov. "E remove a ameaça de ter que lidar com um monte de prosa vitoriana, muitas vezes densa e obscura".

Para alguns leitores, parte da atração de "Drácula" é o que eles veem como sua angústia homoerótica. "É um romance extremamente queer", disse Gorski. "Drácula é retratado como um sedutor no romance, tanto das mulheres quanto de Jonathan. Há também a amizade entre Mina e Lucy". No Tumblr, ela disse, as linhas "queer" da narrativa do romance inspiram discussões e ficção escrita por fãs.

Com o sucesso do "Drácula Daily", outros Substacks e boletins informativos começaram a veicular versões seriadas da literatura clássica, disse Kirkland.

"Surgiu todo um ecossistema de outras pessoas fazendo a mesma coisa com outras obras de domínio público", ele disse, apontando para a serialização digital de livros como "Moby-Dick", "Sofrimentos do Jovem Werther" e "A Divina Comédia".

Kirkland apontou que o apelo do livro também deriva em parte de nosso fascínio por vampiros e sua representação sempre mutável na arte e cultura ocidentais. Kirkland disse ter crescido assistindo ao conde em forma de fantoche de "Vila Sésamo". Os leitores do Gen Z reavivaram os romances "Crepúsculo".

Na série de TV "What We Do in The Shadows", vampiros avançam aos tropeços pelo mundo moderno, com muita confusão e um lado "queer" devasso que parece ter sido extraído diretamente do romance de Stoker. "As pessoas agora curtem desconstruir as histórias de vampiros", disse Davydov. "'What We Do in The Shadows’ é uma paródia brilhante dos clichês sobre vampiros".

Com o "Drácula Daily", os fãs de vampiros podem voltar à fonte original.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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