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Jonathan Banks Instagram/jonathanrbanks

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Finn Cohen
The New York Times

Este artigo contém spoilers sobre o final da série "Better Call Saul".

"Com júbilo e riso, que venham as rugas da velhice", escreveu Shakespeare. É um sentimento que não pôde ser aplicado muitas vezes a Mike Ehrmantraut, matador de aluguel e solucionador de problemas do submundo de Albuquerque nas séries "Better Call Saul" e "Breaking Bad".

Moralmente conflitado, exibindo rugas de sobra mas quase nenhuma alegria, Ehrmantraut foi quase sempre mostrado como um sujeito brusco, ranzinza e de sangue gélido –mas com um fraco por sua neta–, em "Breaking Bad", chegando à história na segunda temporada e participando da trama até ser assassinado, três temporadas mais tarde. No entanto, durante a sexta temporada de "Better Call Saul", que acabou na segunda-feira (15), os criadores da série, Vince Gilligan e Peter Gould, deram ao personagem uma história pregressa matizada, e o expandiram, tornando-o uma figura aprisionada entre o peso da própria culpa e o desejo de proteger o que resta de sua família.

Jonathan Banks, que interpretou Ehrmantraut, sabe bem o que é sobreviver sob pressão, depois de uma infância passada em um bairro complicado de Chillum Heights, Maryland. A dedicação ao teatro no colégio e na universidade o conduziu a uma longa carreira no cinema e na televisão, com papéis em filmes como "Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu", "Um Tira da Pesada" e "Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi" (2017), na Netflix. Mas o papel de Ehrmantraut serviu para coroar sua carreira, depois de décadas de trabalho sólido como coadjuvante, conduzindo a cinco indicações ao Emmy, que vieram se somar à que ele havia recebido pelo drama "Wiseguy", da rede de TV CBS, no final da década de 1980.

Banks às vezes é tão brusco e direto quanto seu personagem, embora com um pouco mais de alegria. Ao longo de duas conversas este mês, ele discutiu as mudanças que o papel causou em sua vida, e falou se de fato fazia todas aquelas palavras cruzadas. Abaixo, trechos editados dessas conversas.

Você assistiu ao episódio final?
Não assisti. Mas sei o que acontece. A última cena que Bob Odenkirk e eu fizemos juntos no deserto, na qual eu lhe pergunto se ele não se arrepende de nada... Mike continuava procurando algo de humano naquele cara. Tinha acabado de passar aqueles dias todos no deserto. E estava impressionado com o fato de aquele cara ter sido capaz de se recompor e sobreviver.

O que é só uma maneira prolixa de dizer que, se Mike estivesse vivo quando Jimmy foi preso e confessou tudo —eu me pergunto se Mike teria ficado surpreso. Talvez não fosse surpresa para ele que o cara enfim demonstrasse ter uma consciência.

Você começou a interpretar Mike em 2009. Há algo em sua própria vida que ajudou a dar forma a todas as diferentes camadas que vimos no personagem ao longo dos anos?
Eu me baseei, em parte, em pessoas com quem cresci, pessoas que eu temia ou respeitava. Sabe, sempre me parece um pouco dramático demais quando alguém diz que cresceu em um bairro difícil, que sua infância foi complicada. Eu me limito a dizer que não cresci em um bairro de jardins. A vida era bem difícil. Certamente nada comparável a "Breaking Bad" ou à vida dos cartéis de drogas, mas o suficiente para atrair minha atenção. Havia muitos dias em que você andava por lá com medo —ou pelo menos eu andava.

Apanhei bastante, levei muitos murros na boca. Isso é algo que lhe dá uma certa dureza, vamos dizer, e faz com que você não seja pego de surpresa quando de repente se vê envolvido em uma briga, ou é surrado, ou o que quer que seja. Quanto ao Vietnã, a parte da vida de Mike em que ele foi atirador de elite: tenho vários amigos íntimos que lutaram naquela guerra. E um desses amigos foi sepultado no Cemitério Nacional de Arlington há cerca de um mês e meio. Há muitos caras que voltaram da guerra e sei que foram muito prejudicados pela sua experiência em combate. Isso é algo que eu nunca experimentei —tomei emprestado de pessoas que conhecia.

Assisti às conversas que você e Mark Margolis (que interpretou Hector Salamanca na série) tiveram como parte de um ciclo de palestras de atores de "Better Call Saul"; fiquei com a impressão, com base em seus comentários sobre ser um ator batalhador, que você, como Mike, é um sujeito que não tolera gente sonsa.
Gosto de ser direto. Gosto de ser honesto. Não gosto de fingimento. E tento não ser condescendente ou pretensioso. Gosto de honestidade, pura e simplesmente. E honestidade não é tão simples assim.

E quanto a todas aquelas palavras cruzadas? Você já era bom nelas antes de começar a interpretar Mike?
Eu era horrível, realmente horrível. Nos quadrinhos de domingo, há aquele jogo de "encontre seis diferenças entre duas fotos" ou dois desenhos. Eu tenho dificuldade até com isso. Vou lhe dizer quem é ótimo nas palavras cruzadas, quem resolve tudo de uma vez: Michael McKean.

Você teve que fazer muito trabalho físico extenuante para esse papel. Eles lhe pediram alguma coisa que você tenha recusado?
Não. Bem, na verdade eu nunca vou perdoar Vince Gilligan por ele me fazer filmar no deserto sob um calor de 45°C todos os dias. Mas isso me dá direito de reclamar dele para sempre! É maravilhoso. (Risos.) E tenho que dizer, aquele deserto —o amanhecer ou o pôr-do-sol, os momentos de tempestade no deserto do Novo México, e os cavalos selvagens que víamos por lá. Meu Deus. Não há o que pudesse me convencer a abrir mão de tudo aquilo.

Houve algum momento em que sua relação com o papel se transformou em um sentimento de propriedade?
Sim. Mike é meu. Mike me pertence. Tive de segurar as lágrimas quando você perguntou isso. E acho que a coisa honesta a dizer é que, se eu pensar bem sobre isso, Mike também fez com que Johnny mudasse.

Acho que Jonathan Banks, por interpretar Mike, se tornou um pouco mais silencioso, um pouco menos ruidoso. E o que quero dizer com a palavra "silêncio" é que agora ouço mais do que há 12, 13 anos. Não gosto de usar a palavra "testemunha", mas é isso que me vem à mente. Acho que ele talvez tenha me afetado de forma a me tornar um pouco mais paciente. Ou talvez isso seja algo que vem com a idade, de qualquer forma.

Alguma vez você recebeu um roteiro que o levou a pensar que "Mike não faria isso"?
Houve momentos em que pensei comigo mesmo que "oh, acho que Mike não faria isso". Mas, para ser bem honesto, descobri que muitas vezes fazia mais sentido ceder aos escritores.

A primeira coisa que me vem à mente é em "Breaking Bad", quando Mike deixa sua neta no parque e tem de fugir. Eu dizia comigo mesmo que "não, Mikey nunca deixaria sua neta". E, claro, o raciocínio é que a polícia está lá no parque. Os policiais vão cuidar dela, vão devolvê-la à mãe. Mas ainda é difícil para mim aceitar que Mike deixou a neta no parque.

Há uma cena em "Better Call Saul", na última temporada, em que Mike está lendo "O Pequeno Príncipe" para sua neta, Kaylee. É um trecho em que o pequeno príncipe diz que "minha flor é efêmera e tem apenas quatro espinhos para se defender contra o mundo". O que você acha que essa cena significa para Mike?

Amo muito aquela cena. E amo muito "O Pequeno Príncipe". É uma lição de vida para aquela criança, obviamente, o que ele está lendo. Mas, se bem me lembro, também ecoa de muitas maneiras em Mike.

De que maneiras?
(Pausa longa.) Inocência. Proteção à inocência. E o consolo de relaxar, mesmo que apenas por um momento. Há duas coisas acontecendo —não só o livro, mas ela. Apesar de todos os seus medos e dúvidas, o mundo é bom por um momento na companhia daquela criança inocente e daquele livro inocente.

Existem dois mundos diferentes. E parte da miséria de Mike é que ele pode ler "O Pequeno Príncipe" com Kaylee, e depois vai ter de fazer alguma coisa que sabe que não é boa. É uma das razões pelas quais ele se despreza, porque ele sabe o que é certo. Há muitos personagens na história que não sabem o que é certo, ou, se sabem, nem percebem. Mike está muito consciente do que está fazendo e sabe que o que ele faz não é bom.

Mike é uma das poucas pessoas na história que vê a si mesmo e aos outros claramente, e isso transparece em seus relacionamentos com diversos outros personagens, bons e ruins.
Ele perdeu a alma quando se tornou responsável pela morte de seu filho. O que ele tenta recuperar —e eu já disse em outras ocasiões que isso se torna seu calcanhar de Aquiles— é que ele não quer ver as pessoas se envolverem e se machucarem. Ele vê o que alguém tem de bom, mas isso normalmente tem um preço para ele. Há aquele diálogo que você conhece bem: "Se uma pessoa está no jogo, ela está no jogo". Mike perde a compaixão quando determina que uma pessoa está no jogo.

Sabe, falar de bandidos, admirar personagens miseráveis –desde que o homem se tornou capaz de abrir a boca e contar uma história isso continua a acontecer. Tenho uma citação na minha cozinha —vou levá-lo até lá para que você possa ler. (Ele carrega o laptop pela cozinha) Aqui vamos nós: "De vez em quando, tínhamos a esperança de que, se vivêssemos como boas pessoas, Deus permitiria que fôssemos piratas". Mark Twain. (Risos).

No episódio final, porém, a última cena me fez pensar que o tema dominante em todo o universo de "Breaking Bad" e mesmo no caso de Walter White é que, não importa o quanto uma pessoa se torne má, o amor pode levá-la de volta a algum lugar um pouco melhor. Você acha que esse aspecto pode se aplicar à vida real, que alguém pode ser redimido pelo amor?
Sim, porque nesse caso a pessoa já não estará mentindo para si mesma. A pessoa está tentando se emendar, mesmo que seja apenas momentaneamente —mesmo que apenas cinco segundos antes de morrer. Na infância, quando você quer um picolé e tenta descobrir como obtê-lo, você mente, faz o que puder para conseguir o que quer. Como adulto, a esperança é de que em algum momento a pessoa descubra que é preciso deixar de mentir. Ela tem que ser capaz de repousar a cabeça no travesseiro à noite e dormir em paz. Não minta para sua mulher, não minta para seus amigos, não minta para si mesmo. Parece muito banal, mas é nisso que acredito. Acredito de verdade.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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