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Penélope Cruz diz ter relação sobrenatural com Almodóvar: 'Difícil explicar'

Atriz está lançando a sétima parceria com diretor, 'Mães Paralelas'

A atriz Penélope Cruz NYT

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Kyle Buchanan
The New York Times

Não é difícil imaginar que o primeiro telefonema de Pedro Almodóvar para Penélope Cruz tenha surgido como uma manifestação da vontade da atriz. Desde menina, em Madri, ela assistia a filmes do diretor repetidamente em vídeo Betamax, sempre com a esperança de que o cineasta espanhol viesse a encontrar um espaço para ela em seu mundo brilhante e ousado.

Ela sonhava com isso tão frequentemente que, no dia em que ele telefonou a fim de convidá-la para um papel, a sensação não foi a de uma primeira conversa –parecia mais a décima, ou centésima, de alguém que ela já conhecia muito bem.

O elo foi confirmado de maneira ainda mais intensa quando Almodóvar a convidou para uma visita ao seu apartamento para a leitura de um roteiro que ele estava escrevendo. Cruz ainda era uma atriz principiante –isso aconteceu em 1992 e seus dois primeiros filmes, "Jamon Jamon" e "Belle Époque", tinham acabado de estrear—, mas ao trocar linhas de diálogo com o cineasta, um nome muito mais estabelecido, na cozinha da casa dele, a conexão entre os dois não poderia ter parecido mais natural.

"É difícil explicar sem parecer estranha", ela me disse, "mas conhecíamos um ao outro, sentíamos um ao outro, éramos capazes de ler os pensamentos um do outro".

Cruz não está brincando, sobre essa última afirmação: quando se trata de Almodóvar, ela afirma ter uma intuição quase mística. O cineasta não a escalou para um papel depois daquela primeira reunião –ela tinha 18 anos, e a personagem 35—, mas ao longo dos anos seguintes Cruz continuou a sonhar com Almodóvar, imaginando onde em Madri ele estaria. Depois, ela ia ao teatro ou casa noturna em que tinha imaginado vê-lo e lá, entre tantas outras silhuetas muito mais convencionais, ela via de longe seu topete característico.

O que se deve fazer quando você sente uma conexão que parece natural e sobrenatural a um só tempo? Se estamos falando de Cruz e Almodóvar, a resposta é que chega o momento em que você se rende a ela, e o resultado disso foram os sete filmes que eles já fizeram juntos. O mais recente deles, "Mães Paralelas", é uma de suas melhores colaborações, e traz Cruz como uma mãe que luta para manter oculto um terrível segredo —longa será disponibilizado na Netflix em 18 de fevereiro.

O desempenho finamente calibrado da atriz lhe valeu o Troféu Volpi no Festival de Cinema de Veneza e o prêmio de melhor atriz da Associação dos Críticos de Cinema de Los Angeles e da Associação Nacional dos Críticos de Cinema dos Estados Unidos. O filme também pode valer para Cruz, que ganhou um Oscar por "Vicky Cristina Barcelona", sua quarta indicação a um prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

Perguntei por email a Almodóvar o que ele achava das visões feiticeiras de Cruz, e ele inicialmente parecia tentado a zombar da ideia: na época em que se conheceram, os movimentos dele em Madri eram bem conhecidos de todos, e encontrá-lo não era uma tarefa nem um pouco difícil. Ainda assim, ele disse, o poder assombroso da crença de Cruz provou ser essencial para o relacionamento de trabalho entre eles.

"Penélope tem uma fé cega em mim", escreveu Almodóvar em um longo email. "Está convencida de que sou um diretor e roteirista melhor do que realmente sou. E essa fé cega me dá a confiança de que preciso para pedir qualquer coisa a ela enquanto a confiança que ela deposita em mim permite que faça durante as filmagens coisas que não ousaria com outros diretores, porque ela sabe que estou olhando para ela como se por meio de milhares de olhos". "Mas sim", ele acrescentou, "ela com certeza tem um pouquinho de bruxa".

Hoje em dia, quando o assunto é a intuição de Cruz, as pessoas sabem que o melhor é não discutir com ela, e "Mães Paralelas" oferece um exemplo instrutivo. Quando Almodóvar falou inicialmente com a atriz sobre o projeto, em 1999, os dois tinham acabado de fazer dois filmes juntos, "Carne Trêmula" e "Tudo sobre Minha Mãe", nos quais Cruz tinha interpretado mulheres grávidas. "Mães Paralelas" teria completado um trio de papéis de gestantes: Almodóvar descreveu a história à atriz explicando que ela interpretaria a jovem Ana, uma das duas mães solteiras cujos filhos são trocados na maternidade.

Mas a intuição de Cruz se manifestou de imediato e ela descobriu que a personagem que a interessava mais era Janis, a mãe mais velha, uma fotógrafa determinada que estava lidando com uma gravidez inesperada e com um capítulo sombrio na história da Espanha. O projeto demoraria duas décadas para entrar em produção, mas, em 2020, quando Almodóvar disse a Cruz que tinha ressuscitado "Mães Paralelas" e que agora a imaginava no papel de Janis... bem, não é agradável quando as coisas se encaixam de um jeito assim satisfatório?

É difícil imaginar qualquer outra atriz que não Cruz no papel, porque de muitas formas ela praticamente passou a vida toda se preparando e amadurecendo para ele. Como Janis, Cruz ama fotografia, um hobby para a atriz desde que ela era adolescente. (É divertido vê-la por trás da câmera, na primeira cena de "Mães Paralelas", dando instruções a um modelo masculino porque a imagem que tornou Cruz famosa foi a de uma jovem inocentemente sedutora e a tornou a musa de muitos homens.) Ela é elegante e cosmopolita, como Janis, e mistura jeans e roupas de grife de uma maneira chique, mas jamais exagerada. E agora também é mãe (casada com o ator Javier Bardem, Cruz tem dois filhos).

Mas não demora para que surja uma virada perpendicular na trama de "Mães Paralelas", quando Janis descobre a verdade sobre a criança que presumia ser sua. Ao decidir manter a situação em segredo, Janis se divide em duas: precisa agir como uma mãe feliz e despreocupada, mas sua culpa vai se acumulando e um desfecho repleto de angústia parece se tornar cada vez mais inevitável. Essa sensação de dualidade provou ser a coisa mais desafiadora para Cruz, o ponto mais difícil para que ela encontrasse uma conexão com a personagem, segundo o diretor.

"Ser capaz de expressar um sentimento e o sentimento oposto ao mesmo tempo é incrivelmente difícil", disse Almodóvar, "e Penélope consegue fazê-lo, mesmo que isso não esteja em sua natureza". A atriz solicitou um processo de ensaio incomumente demorado, de alguns meses de duração, para tentar chegar ao cerne de uma personagem que vive em conflito constante com seus sentimentos.

Janis precisa se manter sob controle rigoroso, mas Cruz não. Em uma conversa por vídeo de Madri, ela se mostrou calorosa e efusiva e, mesmo confinada a uma janela do Zoom, provou ser capaz de usar o quadro todo, gesticulando expressivamente como se estivesse jogando mímica. "Como é que posso falar sobre um filme como esse sem soar coitadinha demais, ‘pobrezinha, que sofrimento interpretar um personagem como aquele’?", ela ponderou. "Mas também não quero mentir para você e dizer que não tive problemas e que foi tudo muito fácil".

Almodóvar filma seus trabalhos cronologicamente e por isso, embora Janis não saiba que tragédias estão por acontecer, Cruz estava completamente consciente de quando viriam as suas cenas mais duras. "Sabia que seria adrenalina total, provavelmente a filmagem mais intensa de minha vida –e foi", ela disse. Mas ainda assim, Cruz manteve todos esses sentimentos sob controle, como Janis faz, até que um dos momentos culminantes da história se provou tão difícil de filmar que Almodóvar teve de ajudar a atriz, devastada, a se erguer do chão, no final da cena.

"Eu preferiria que você pudesse fazer esse trabalho sem sofrer tanto", disse Almodóvar a ela naquele dia. Mas não é assim que Cruz trabalha.

"Ao me lembrar do que aconteceu, não vejo aquilo como sofrimento", disse Cruz, "porque o que fiz foi por ela, foi por Janis, ou por todas as mulheres que pudessem estar em situação parecida, a de perder o que mais amam. Para mim, ela estava viva. É uma criatura real, criada por ele [Almodóvar]".

Por isso, quando Cruz declara que "Mães Paralelas" foi o trabalho mais difícil que já fez, ela o diz no bom sentido. Ainda que Janis e Cruz inicialmente pareçam ser semelhantes, interpretar aquela mulher distanciou Cruz de si mesma mais do que ela poderia imaginar. "Tenho um sorriso no rosto porque o papel me deu muito e me fez sentir viva demais, criativamente", ela insistiu. "Foi exaustivo em termos emocionais, mas ao mesmo tempo curti cada segundo".

Se você pedir às pessoas que a conhecem que descrevam Penélope Cruz, um adjetivo sempre aparece. "Passei a vida inteira ouvindo as pessoas dizerem como eu sou teimosa", me disse Cruz, e fez uma pausa. "Não sei se isso acontece porque sou do signo de touro".

Qualquer que seja o motivo, a teimosia a serviu bem. Quando Cruz tinha 14 anos e queria se tornar atriz, ela se candidatou a um programa de busca de talentos dirigido pela agente Katrina Bayonas, em Madri. Os candidatos precisavam ter pelo menos 16 anos de idade e por isso Cruz mentiu. Bayonas desconfiou da mentira e por conta disso deu a Cruz uma cena cínica de "Casablanca" como teste, sabendo que a menina teria dificuldade para entender o contexto.

Cruz tentou fazer a cena, mas foi rejeitada nas duas primeiras vezes que fez o teste; da terceira vez, ela improvisou uma cena que permitiu que liberasse toda a raiva e frustração que estava sentindo por não ser levada a sério. A agente ficou impressionada com seu talento e com sua persistência, e mais tarde telefonou para dizer que, entre os 300 candidatos que apareceram para o teste, ela tinha escolhido representar Cruz. (Décadas mais tarde, Bayonas continua a ser a agente da atriz na Espanha.)

Perguntei a Cruz o que a havia tornado tão determinada desde aquela época, tão segura de si. Talvez isso aconteça mesmo por ela ser de touro ou talvez por alguma outra coisa que ela aprendeu com enorme disciplina durante os anos de sua infância em que estudou balé clássico, às vezes praticando por até quatro horas ao dia. "A sensação de que os dedos de seu pé estão sangrando, mas você precisa continuar a dançar e a sorrir é algo que realmente persiste em você", ela disse.

Foi mais ou menos a mesma coisa quando sua carreira começou a ganhar impulso e Cruz passou a receber convites para trabalhar em filmes americanos. Mesmo que Hollywood às vezes a tenha colocado em situações desconfortáveis, ela sempre manteve o sorriso. Os diretores de língua inglesa nem sempre sabiam o que fazer com ela, e era frequente que a atriz fosse escalada como um par romântico insípido, em filmes como "Terra de Paixões" e "Espírito Selvagem".

Alguns de seus filmes brilharam mais, como "Profissão de Risco" e "Vanilla Sky", os dois de 2001, mas foi só quando voltou a trabalhar com Almodóvar, em "Volver" (2006), que ela conquistou sua primeira indicação ao Oscar e mostrou a Hollywood o tipo de desempenho marcante de que era capaz.

"Vicky Cristina Barcelona" veio dois anos mais tarde, seguido por outra interpretação que valeu indicação ao Oscar, no musical "Nine". De lá para cá, Cruz se alterna entre grandes filmes de Hollywood, como "As Agentes 335", thriller que estreia este mês, e produções de dimensões mais humanas filmadas na Espanha. E a intervalos de uns poucos anos, ela volta a trabalhar com Almodóvar, que parece sempre disposto a levá-la a subir mais um degrau.

"Nos papéis espanhóis em que ela atua, é fácil perceber seu crescimento e sua extrema versatilidade", escreveu Almodóvar. "Embora eu soubesse que Hollywood viria a se interessar por seu trabalho, ela ainda não desenvolveu plenamente sua capacidade nos papéis em que fala inglês". Embora ele acredite que Cruz tenha feito seu melhor trabalho americano até o momento na minissérie "The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story", em 2018, interpretando uma inabalável Donatella Versace, Almodóvar acrescentou que "o melhor de Penélope ainda está por vir no mercado americano".

Cruz não sente qualquer arrependimento. "Jamais vi minha carreira em Hollywood e minha careira na Europa como coisas separadas", ela disse. "Sinto ter muita sorte nas ofertas que consegui, desde o começo. Algumas tiveram resultados melhores do que outras, mas não posso olhar para o passado e julgá-las apenas por seus resultados ou pelos prêmios ou críticas. Cada passo conta".

Ela admite que, por algum tempo, enquanto se alternava entre Madri e Los Angeles e fazia até quatro filmes por ano, teve de aceitar um nível de estresse que sabia ser insustentável para manter sua carreira. "Era um ritmo insano e comecei a pagar por isso", ela disse. "Dedicava todo o meu tempo àquelas personagens, mas não à minha própria história –nem mesmo à minha família, naquela altura".

E a família importa muito para Cruz porque, desde que se lembra, ela queria ser mãe. Quando menina, ela brincava com as seringas de insulina de sua avó, fingindo dar injeções em suas bonecas. Ela sabia que não queria ter filhos antes dos 30 anos, quando estava concentrada obsessivamente em sua carreira. Mas ao se aproximar dos 40, depois de se casar com Bardem, um ator com quem contracenou muitas vezes, e de poder se tornar mais seletiva quanto aos papéis que aceitava, ela desacelerou e teve seu primeiro filho, Leo, seguido por uma filha, Luna.

"A natureza lhe dá alguns meses para que você se prepare, mas no segundo em que você vê seu filho ou filha pela primeira vez, tudo muda", disse Cruz. "Até o seu ego. Você imediatamente é levada para um lugar mais saudável".

Bem, a menos que você seja Janis, de "Mães Paralelas", que na verdade encontra uma série de novos problemas para resolver. Mas a maternidade ajudou Cruz a compreender por que Janis se deixa levar a tamanhos extremos de sigilo a fim de proteger seu filho. "Eu não teria feito algo de muito diferente do que ela fez", disse Cruz. "Muita gente me diz que sabe que ela teve um grande dilema moral a enfrentar, mas que mesmo assim o que fez não foi muito ético. E eu pergunto se a pessoa é pai, se a pessoa é mãe. Porque talvez, se for, seja capaz de imaginar aquela situação".

Na metade de dezembro, o Museu de Arte Moderna de Nova York fez uma homenagem a Cruz por sua carreira. Almodóvar enviou um tributo gravado em vídeo. "Você me disse que quando eu envelhecer, tomará conta de mim", ele declara no final do vídeo. "Ainda não estou tão velho, mas espero que cumpra o que prometeu. Quando eu for velho, espero que você venha e se torne, no caso, minha mãe".

Perguntada sobre aquele momento, Cruz continua incrédula. "Você imagina como foi assistir àquele vídeo logo antes de chegar minha vez de discursar?", ela disse. "O que é engraçado em Pedro é que ele não me diria aquilo em uma conversa pessoal, nós dois sozinhos. Prefere me dizer em um vídeo que talvez milhares de pessoas verão".

Mas ela se recorda da conversa a que o cineasta estava se referindo. Dezoito anos atrás, Cruz disse a ele o quanto o amava e que os dois poderiam contar um com o outro para sempre. Ela se lembra de como o rosto dele mudou quando ela disse aquilo. "Ao retribuir agora ao que eu disse, ele não está só pedindo alguma coisa para ele", disse Cruz. "Está me colocando em um lugar de valor muito grande em sua vida, em um lugar de grande confiança. É uma maneira de dizer que ele quer que nos mantenhamos ligados pelo resto de nossas vidas".

Pode parecer incomum que um homem mais velho peça a uma amiga mais jovem para se tornar sua mãe, mas a maneira pela qual Almodóvar encara a maternidade sempre desafiou alegremente as convenções: Cruz interpretou uma freira grávida para ele em "Tudo Sobre Minha Mãe", afinal. As mulheres de "Mães Paralelas" não esperavam ter filhos, e às vezes lutam contra aquilo que a sociedade espera delas por causa disso. Mas a maternidade só se torna uma limitação para aqueles que permitem que isso aconteça. O filme culmina com uma cena de vínculos maternais –alguns biológicos, outros não– que é quase insuportavelmente comovente.

Para Cruz e Almodóvar, a maternidade envolve mais do que o papel de cuidadora: se você tem a sorte de servir como mãe para alguém que importa para você, ela pode ser a expressão definitiva de empatia e devoção. Nesse contexto, todas aquelas visões que Cruz teve sobe Almodóvar não parecem tão sobrenaturais. Talvez, em sua certeza teimosa e esmagadora quanto a um amor profundo que duraria a vida inteira, elas estivessem simplesmente expressando, desde o começo, uma intuição materna.

Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci

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