Como 'Sex and the City' ajudou esse tipo de produção a proliferar e crescer
Pioneira, série da década de 1990 tem a chance de fazer ainda mais
Pioneira, série da década de 1990 tem a chance de fazer ainda mais
No primeiro episódio da série "Girls", da HBO, Shoshanna mostra seu pôster de "Sex and the City" a sua prima Jessa. "Você com certeza é parecida com a Carrie, mas, tipo, com algo de Samantha e o cabelo de Charlotte", diz Shoshanna. "A combinação é, tipo, ótima".
E no primeiro episódio de "Run the World", na rede Starz, a escritora Ella que tem um relacionamento tumultuado com um ex, descreve o antigo parceiro à amiga Sondi como "o meu Big". A amiga rejeita a descrição dizendo que ele não tem nada de Big. "Há um mapa muito claro e estabelecido na cultura pop quanto a isso", ela diz a Ella.
E com certeza existe mesmo um mapa claro e estabelecido para isso. Não é por acaso que tantas séries usam "Sex and the City" como referência. O programa, que estreou na HBO em 1998 e ficou em cartaz por seis temporadas (e depois resultou em dois filmes terrivelmente ruins), mudou o jogo ao retratar mulheres como seres complicados e sexuais.
Mas quando "Sex and the City" é assunto, agora é normal que surja algum qualificativo: "A série era muito boa —para a sua época". Mais de duas décadas passaram desde a estreia de "Sex and the City" na HBO e não foi só a nossa cultura que mudou. O gênero de programa que a série originou, uma mistura de drama e comedia envolvendo grupos de amigas, em geral quatro mulheres lidando com problemas de amor, sexo e namoro, também evoluiu.
Dois anos depois de sua estreia, "Sex and the City" foi seguida por "Girlfriends", uma série sobre quatro amigas negras que trabalhavam e namoravam em Los Angeles. Em 2012, "Girls" surgiu como o "Sex and the City" da geração milênio. Agora, quase uma década mais tarde, 2021 veio como um ano generoso com a estreia de séries como "Run the World", "Harlem" e "The Sex Lives of College Girls", e com a temporada final de "Insecure".
Vivemos uma nova era de séries sobre a vida feminina contemporânea que ou reagem a "Sex and the City" ou dialogam com a predecessora, alargando os panoramas raciais e de classe social e tratando de forma mais ampla as nuanças de ser uma mulher no mundo moderno.
Em meio a essa nova onda de séries sobre grupos de mulheres, "Sex and the City" voltou com uma versão repaginada na HBO Max, "And Just Like That", na qual Carrie (Sarah Jessica Parker), Miranda (Cynthia Nixon) e Charlotte (Kristin Davis), todas na casa dos 50 anos, se acomodaram às suas vidas e famílias. A década de 1990 ficou para trás. O mesmo vale para Samantha (Kim Cattrall), uma das personagens favoritas dos fãs. E agora a nova série tem a difícil tarefa de se reintroduzir em um gênero que amadureceu e avançou bastante com relação ao modelo que o original construiu.
Fica aparente de imediato o quanto a versão repaginada está se esforçando para atualizar "Sex and the City" e enquadrar a série à atualidade. Carrie tem uma conta no Instagram! Apresenta um podcast sobre sexo! O filho adolescente de Miranda vai começar a fazer sexo! Charlotte tem uma amiga negra! A série tem muito a fazer para se enquadrar às mudanças pelas quais a cultura —e a TV, em parte por conta de "Sex and the City"– passaram nos últimos 23 anos. E nos episódios exibidos até agora, os resultados são suspeitos.
Em "And Just Like That", Miranda está fazendo um curso na Universidade Columbia com estudantes décadas mais jovens do que ela e enfrenta dificuldades para entender o que significa ser uma aliada para as pessoas "queer" e não brancas. A política de identidade era uma das áreas que "Sex and the City" evitava bem como quatro dos cinco grandes distritos de Nova York.
Não só a série era estrelada por quatro mulheres brancas como o número de pessoas não brancas e "queer" que ela retratava, mesmo em papéis muito secundários, era tão pequeno que poderia levar um telespectador ingênuo a imaginar se não havia gays ou pessoas de outras etnias na Nova York da década de 1990. (Sim, havia.)
Muitas das séries que surgiram depois de "Sex and the City" trouxeram elencos que oferecem contraste direto com suas personagens brancas e heterossexuais: "Girlfriends", "Harlem", "Insecure", "Run the World" e "The Sex Lives of College Girls" retratam amizades entre mais do que mulheres brancas. Na verdade, a maioria dos elencos dessas séries é formada por mulheres negras.
A presença de mulheres negras que controlam sua sexualidade, mas não são retratadas como altamente sexualizadas, e que são personagens multidimensionais –dotadas de preocupações reais, carreiras reais e amizades reais– é revolucionária da mesma maneira que Carrie e cia. um dia o foram, para as mulheres brancas.
Pelo menos para as mulheres brancas e heterossexuais, "Sex and the City" se distinguia na década de 1990 pela presença de personagens gays —Stanford Blatch (Willie Garson) e Anthony Marentino (Mario Cantone)– mas o que era visto como progresso na época seria encarado como problemático hoje. Stanford e Anthony se enquadravam alegremente ao estereótipo do "melhor amigo gay" e terminaram unidos como casal. Quanto às mulheres, o sexo que a série trazia no título era quase exclusivamente binário e heterossexual.
Mais tarde, sucessores como "Girlfriends" e "Girls" seguiriam basicamente o mesmo padrão. Mas a evolução da política sexual na cultura mais ampla também trouxe mudanças quanto a isso nas séries femininas. "The L Word", por exemplo, que estreou no mesmo ano em que "Sex and the City" saiu do ar, trouxe um retrato inovador de mulheres "queer" que a TV não havia mostrado até ali.
Das séries mais recente no gênero "grupo de amigas", "Harlem" é uma das poucas a ter entre seus personagens centrais mulheres "queer". E não só uma: além de Tye (Jerrie Johnson), que se apresenta como homem, há Quinn (Grace Byers), que inicialmente parece ser a Charlotte negra da série, mas termina por questionar sua heterossexualidade reflexa ao sentir atração por uma amiga. E em "The Sex Lives of College Girls", temos a socialite Leighton (Renée Rapp), obcecada por manter sua reputação que passa toda a primeira temporada da série no armário.
"And Just Like That" tenta remediar as deficiências do programa original ao introduzir amigas não brancas (cada uma das protagonistas tem pelo menos uma delas, entre as quais as personagens interpretadas por Sarita Choudhury, Nicole Ari Parker, Karen Pittman e Sara Ramirez), mas elas não têm tramas pessoais significativas ou desenvolvimento autônomo.
A série também traz novos personagens queer –Rose (Alexa Swinton), a filha de Charlotte, que tem disforia de gênero, e a chefe de Carrie, Che, interpretada por Ramirez, que desafiam as noções conservadoras sobre sexo e sexualidade das damas do elenco principal ou, no caso de Miranda, a conduzem a descobertas pessoais sobre sua sexualidade.
As tentativas da série de mostrar diversidade são elogiáveis, mas rasas, e os personagens parecem presentes apenas para educar as três mulheres brancas do elenco original sobre a nova política de identidade e para ajudar no desenvolvimento de suas histórias.
"Sex and the City" foi surpreendentemente aberta sobre o direito de escolha da mulher em um episódio em que Miranda considera um aborto, mas no geral se manteve apolítica quanto a questões de saúde feminina. As séries sucessoras em geral seguiram esse exemplo –de fato, dada sua ênfase em sexo, elas não dedicaram grande atenção às questões espinhosas derivadas dele. Ainda que "Sex and the City" e seus sucessores capturem as nuanças da vida feminina com precisão, muitas dessas séries preferiram contornar os aspectos mais sérios e menos divertidos de ser mulher em nossa era.
A questão do aborto surge às vezes e ocasionalmente uma personagem contrai uma doença sexualmente transmissível que desaparece tão rápido quanto apareceu. Nas séries descendentes de "Sex and the City" em que os elencos são negros, há o desafio adicional de discutir problemas médicos mais comuns entre as mulheres negras –em "Girlfriends" e "Harlem", por exemplo, há personagens que sofrem de fibromas uterinos. E em "Insecure", uma personagem sofre de depressão pós-parto, outro problema de saúde comum, mas raramente discutido e para o qual o risco é mais alto entre as mulheres negras devido às condições econômicas e sociais desiguais.
Mas as séries sobre grupos de amigas evoluíram significativamente pelo menos em um dos reinos da política sexual. Hoje, pareceria estranho não incluir tramas relacionadas a misoginia e relacionamentos tóxicos, assédio e consentimento em séries sobre mulheres. Nas produções mais recentes, aquelas que trazem personagens mais jovens –primeiro "Girls" e agora "The Sex Lives of College Girls"– foram as mais dedicadas ao tratar desses temas, refletindo a frequência de conversações sobre esse assunto entre as gerações mais jovens.
"Sex and the City" sempre evitou tratar de política sexual e continua a fazê-lo, ainda que a questão esteja presente na nova série de qualquer forma por conta das numerosas acusações de agressão sexual feitas contra Chris Noth, o ator que interpreta Mr. Big.
Sempre chega o momento em que a maioria de nós precisa trabalhar sério para ganhar a vida, especialmente em Nova York, mas "Sex and the City" não precisou deixar de lado as viseiras com relação à política de carreira e questões de classe a fim de se tornar uma série de sucesso. Pelo contrário: o programa provavelmente se tornou uma fantasia mais atraente ao desconsiderar esses assuntos.
Séries mais novas adotaram perspectivas mais realistas. Para as mulheres de séries como "Insecure", carreiras são preocupações presentes e imediatas; em "Girlfriends" e "The Sex Lives of College Girls", as diferenças de classe social são retratadas com grande efeito dramático e cômico.
Carrie e as meninas, enquanto isso, sempre pareceram levar vidas de grande ócio por razões que nem sempre pareciam facilmente explicáveis. O máximo que a "Sex and the City" original fez para tratar de questões de classe entre suas mulheres foi um episódio no qual Carrie se sente humilhada por ter de –que absurdo!– tomar o ônibus. "Girls" usava as mesmas viseiras, 14 anos mais tarde. As duas séries existiam em uma bolha impenetrável de vidas de classe alta, o que as tornava excludentes para muitas audiências que estavam fora daquela perspectiva estreita e oferecia uma imagem restrita e bidimensional da vida moderna.
E no entanto continua a haver audiência para "And Just Like That", da mesma forma que um dia houve audiência para "Sex and the City". Mas agora, para os fãs que querem mais de sua ficção, o número de opções é maior.
Em determinado momento de "And Just Like That", Carrie ri desconfortavelmente o tempo todo durante um episódio de podcast sobre masturbação. Mais tarde, ela relata a experiência a Miranda, dizendo que precisa ser mais explícita ao falar de sexo. "Mas essa não é você", diz Miranda. Carrie rebate: "Bem, não podemos continuar sendo as pessoas que fomos, não é?" As duas mulheres, um dia modernas e antenadas, parecem relíquias de museu lançadas por acidente à era moderna.
Uma coisa que as mulheres precisam encarar é a forma única de preconceito de idade que surge como uma assombração quando elas envelhecem. Quanto a isso, muito pouco mudou. As séries sobre grupos de mulheres ainda se dirigem a públicos jovens, começando no final da adolescência com "The Sex Lives of College Girls" e se estendendo a mulheres de seus 20 anos como no caso de "Girls" e "Girlfriends".
Algumas acompanham seus personagens à casa dos 30 anos, como "Insecure", "Harlem" e "Run the World". Para outras faixas etárias, o gênero oferece muito pouco. É como se, quando as mulheres se aproximam dos 40 anos, elas decaíssem para um abismo de celibato e irrelevância.
Assim, o que acontece com essas séries quando as mulheres envelhecem? O gênero se desmantela? Não deveria, porque as mulheres continuam a sair e a fazer sexo depois dos 20 e 30 anos. (Considere outro quarteto que fez exatamente isso alguns anos antes de "Sex and the City": as protagonistas de "As Supergatas".)
Nesses termos, "And Just Like That" deveria ser um sucesso, e é, em certa medida. Mas a sensação é de que a série se sente desconfortável no novo nicho demográfico ao qual suas personagens se enquadram agora. A falha da série quanto a isso não se relaciona às idades das personagens, mas ao fracasso dos roteiristas em reconhecer as maneiras pelas quais mulheres de meia-idade e ainda mais velhas podem ser divertidas, sexuais e relevantes.
As coisas mudaram desde a década de 1990, mas muito continua igual. Ainda adoramos séries sobre a vida amorosa de mulheres. Ainda precisamos de séries sobre amizades femininas. Sem "Sex and the City", talvez não viéssemos a ter todas as séries interessantes de que dispomos hoje.
Há espaço para mais produções desse tipo, mas envolvendo mulheres que não sejam só Carries ou Charlottes ou Mirandas ou Samanthas; passados 23 anos, há muito mais tipos de mulheres fazendo sexo na cidade, e isso é uma vantagem para a televisão.
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci
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