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Cinema e Séries
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Por que as comédias de sucesso hoje são mais sombrias e melancólicas

Cena da série BoJack Hoserman
Cena da série 'BoJack Hoserman' - Netflix
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Jennifer Keishin Armstrong
São Paulo
BBC News Brasil

"BoJack Horseman" começou como mais uma animação para adultos.

A série mostra um homem (na verdade, um cavalo) preso no passado, revivendo seus dias de glória como astro de uma série banal da década de 1980 chamada Horsin' around. BoJack é dependente, tem muito sexo inseguro e parece deprimido - sinais clássicos das ousadas animações para adultos do século 21, seguindo a tendência dos clássicos do gênero como "Simpsons" e "Family Guy" ("Uma Família da Pesada", no Brasil).

Como ocorre em muitas outras séries de streaming, os primeiros fãs de "BoJack Horseman", quando a série estreou em 2014, diziam que o desenrolar da série era lento, mas que ela melhoraria perto do sétimo episódio.

Mas nem esses defensores iniciais poderiam perceber a seriedade das intenções do criador da série, Raphael Bob-Walksberg: ao longo das suas seis temporadas, ela se tornaria uma dolorosa ruminação sobre o sentido da vida, à medida que BoJack enfrentava o vazio do sucesso mundial, perdas devastadoras, uma série de arrependimentos terríveis e a proximidade da morte.

Aquele cavalo chamado BoJack acabou por ser o rosto da comédia do século 21. Como provou a seleção das 100 melhores séries de TV do século 21 pela BBC, as últimas duas décadas trouxeram uma mudança radical das comédias para TV rumo ao lado sombrio. "BoJack Horseman", "Fleabag", "Catastrophe", "Veep" e "Crazy Ex-Girlfriend" são algumas das séries que abandonaram o antigo formato "sitcom" (comédia de situação, da abreviação em inglês) —adotado em séries como a norte-americana "Cheers" e a britânica "Coupling".

Pelo menos nas séries em língua inglesa —sim, há um viés definido na pesquisa — as comédias para TV simplesmente não são engraçadas hoje em dia. As risadas são acompanhadas por conteúdo emocional muito maior, muitas vezes combinado com luto, vergonha, dependência, corrupção, doenças mentais e questões existenciais sobre o significado da própria vida.

POR QUE A MUDANÇA PARA UM ESTILO MAIS 'MELANCÓLICO' (OU REALISTA)?

À medida que as opções televisivas se multiplicavam exponencialmente na era do streaming, nós passamos a olhar para a TV de forma mais séria, incluindo as comédias. Essa mudança permitiu que as comédias se equiparassem aos dramas em termos de prestígio, o que é comprovado pelas suas frequentes menções na lista das 100 melhores séries (em comparação, a lista dos 100 melhores filmes do século 21 elaborada pela BBC foi dominada por dramas).

A comédia para TV típica do século 21 alterna livremente entre altos e baixos, risos e lágrimas, descobertas e socos no estômago. Isso torna as comédias mais próximas da nossa vida real que, naturalmente, não está tentando se enquadrar em uma categoria de ficção. O cômico está sempre misturado com o sério. Nós não temos escolha.

Faz sentido que essa evolução tenha ocorrido recentemente. A comédia para TV do século 20 era mais direta — como em "The Golden Girls" ("Supergatas", no Brasil) e as loucas desventuras dos personagens da série inglesa "Fawlty Towers" —e não apresentou grandes evoluções desde o surgimento da televisão até a década de 1990.

Como a televisão era paga pelos anunciantes, os executivos das redes de TV aberta claramente se preocupavam com possíveis ofensas ou situações incômodas para os espectadores. Por isso, a maior parte da programação destinava-se a agradar "a todos" - uma receita para reprimir a criatividade.

Os programas eram constantemente avaliados pelo público, muitas vezes desprezando a criatividade, surpresas ou mesmo suaves desconfortos em favor de mensagens mais amplas. Alguns testes de audiência pediam literalmente aos espectadores que girassem mostradores a cada segundo de um programa para indicar se eles gostavam ou não do que estavam vendo na tela.

Mas isso acabou com o novo milênio. A explosão da programação a cabo fortaleceu a qualidade, inovação e as técnicas de gravação, retirando o gênero cômico das estruturas tradicionais de comédias de situação em estúdios de gravação com trilha de risadas.

O cenário cada vez mais competitivo - que começou no início dos anos 2000, quando as redes a cabo começaram a produzir programas originais para concorrer com as redes abertas - exigiu programas que causassem forte impacto. Isso inicialmente levou os produtores a enfatizar o constrangimento - um parente do pastelão em abordagem mais ousada, mas ainda dentro do campo da comédia pura já conhecida.

Esse constrangimento era muitas vezes acentuado por técnicas "realísticas", como o uso da câmera na mão e o formato de falso documentário —como em "Curb Your Enthusiasm" ("Segura a Onda", no Brasil) e nas duas versões de "The Office" (no Brasil, "Vida de Escritório"). Isso abriu as portas para retratar ainda mais desconforto à medida que o novo século avançava.

Protagonistas desagradáveis ou anti-heróis tornaram-se mais comuns nas comédias e também em dramas, como Larry David ("Segura a Onda") e David Brent e Michael Scott ("The Office", nas versões britânica e americana), até Tony Soprano ("Os Sopranos") e Dexter Morgan ("Dexter").

O crescimento dos streamings trouxe muito mais liberdade: o gênero era menos importante, porque não havia mais grades de horários; as comédias deixaram de ser exibidas em blocos de 30 minutos agrupados e os dramas não eram mais pressionados em espaços com uma hora de duração tarde da noite, na hora mais "séria" da audiência. E a duração dos episódios e das temporadas podia variar, livre da programação das redes de TV.

O público no estúdio e as trilhas de risada haviam sido abolidos há tempos, seguindo uma tendência iniciada com séries "sitcom" de redes abertas como "30 Rock" ("Um Maluco na TV", no Brasil), mas precipitada pelo maior orçamento dos streamings. E destacar-se agora é melhor do que enquadrar-se, já que a capacidade infinita de programação dos serviços de streaming possibilitou um conjunto imenso de escolhas.

'Bálsamo para tempos incertos'

Eventos mundiais catastróficos provavelmente contribuíram para levar as comédias para o lado sombrio.

Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 foram apenas o começo de um desgaste contínuo das ilusões de segurança e garantia de progresso características da vida no mundo ocidental nas décadas de 1980 e 1990. Com o medo permanente do terrorismo, guerras, colapso dos mercados financeiros, tiroteios, polarização política e a pandemia de covid-19, as duas últimas décadas marcaram a perda da inocência para muitos ocidentais que criaram a maior parte das séries em língua inglesa.

Os dramas já vinham se tornando mais complexos e sombrios antes do 11 de Setembro com o sucesso fenomenal, nos Estados Unidos, de "The Sopranos" (no Brasil, "Família Soprano"), após sua estreia em 1999. E muitas séries vinham ignorando a barreira entre a comédia e o drama —antes e depois do 11 de Setembro —graças, muito provavelmente, à liberdade criativa oferecida, primeiro pela TV a cabo e, depois, pelo streaming.

Mas existe algo mais estimulante na descoberta dos momentos mais sombrios e profundos infiltrados nas comédias. Embora o humor negro fosse um gênero reconhecido no cinema e no teatro há décadas, a televisão havia tradicionalmente evitado os experimentos no setor. Por isso, no século 21, as comédias para TV se tornaram um espaço para discutir as contradições do mundo, reconhecendo que, mesmo nos nossos melhores momentos, a vida pode nos dar um soco no estômago — e, principalmente, que podemos rir até nos nossos momentos mais tristes.

Um exemplo claro da evolução desse gênero é a série "Ted Lasso", recente sucesso internacional, com sua premissa ampla que teria facilmente se transformado em uma série "sitcom" clássica de antigamente: um técnico de futebol americano simples e folclórico (interpretado pelo cocriador da série, Jason Sudeikis) muda-se para o Reino Unido e recebe a tarefa de treinar um time de futebol inglês — mas ele não compreende o jogo e não se enquadra na cultura totalmente diferente do país.

É um cenário clássico de "peixe fora d'água", exibido em toda a história da televisão, desde a série norte-americana "Green Acres", na década de 1960, até "3rd Rock from the Sun" ("Uma Família de Outro Mundo", no Brasil), nos anos 1990. Mas, como fenômeno do século 21, a série se transformou em algo completamente diferente na segunda temporada: exploração dos perigos da masculinidade tóxica e dos poderes redentores da vulnerabilidade, honestidade e do reconhecimento dos colegas. A série ainda é, às vezes, muito engraçada. A vida de Ted poderá ter mais dificuldades que a dos seus parceiros do século passado, mas o panorama da série, pelo menos após duas temporadas, é abertamente otimista.

As comédias sombrias incluídas na lista das 100 melhores da BBC podem não ser tão idealistas, mas a maioria delas encontra-se no lado do otimismo ponderado.

A personagem-título da série britânica "Fleabag" trabalha com seu luto, enquanto Rebecca de "Crazy Ex-Girlfriend" aprende a lidar com seu transtorno de personalidade limítrofe ("borderline"). Elas sobrevivem a sérias dificuldades e conquistam seus finais felizes - muitas vezes aceitando um trauma e seguindo em frente para se tornar uma pessoa mais sensata.

Isso faz com que essas séries sejam o bálsamo perfeito para tempos incertos: elas não tentam nos convencer de que tudo é positivo - elas abordam as dificuldades do mundo real, que só se agravaram no final da década de 2010 e ao longo de 2020.

O FIM DOS GÊNEROS

Naturalmente, algumas das grandes séries cômicas do século 21 são totalmente sombrias, sem uma abertura sequer para a luz. Veep terminou com uma condenação profundamente cínica da política dos Estados Unidos, enquanto Succession ainda precisa revelar algum traço de otimismo sobre a família Roy, a rica dinastia norte-americana das comunicações que protagoniza a história.

A aclamação da crítica e o frenesi que cultua a atual temporada da série "Succession" ressaltam a ressonância do público com a exibição da ganância, incompetência e impunidade dos super-ricos que administram impérios midiáticos de bilhões de dólares. Para os personagens da série, as mudanças de poder e as loucuras desesperadas são dramáticas; para nós, o público, elas são absurdamente cômicas.

Na verdade, é difícil classificar Succession em um gênero. Seus episódios têm uma hora de duração, com muitas reviravoltas dramáticas; a série é deliberadamente shakesperiana; e o prêmio Emmy de 2021 a chamou de drama. Mas ela oferece momentos hilariantes em cada episódio.

Em "Succession", existe a comédia no estilo de O Gordo e o Magro entre o genro Tom e o primo Greg. Há o filho ambicioso Kendall, com seu conceito misto de comédia tradicional e "cringe comedy" (humor com a vergonha alheia) de como é importante seu pai, o patriarca da família. E existe ainda o pequeno detalhe das manchetes falsas divulgadas pelo canal noticioso da família Roy (similar à Fox News), ATN, como: "Imigrantes ilegais de gênero fluido podem estar entrando no país 'duas vezes'".

A única palavra que temos no momento para descrever Succession é o neologismo "dramédia" - ou comédia dramática, que historicamente indicava um drama leve, como "Ally McBeal" ("Ally McBeal: Minha Vida de Solteira", no Brasil) ou "The Marvelous Mrs. Maisel" (no Brasil, "A Maravilhosa Sra. Maisel"), em oposição às comédias mais sombrias.

Todas as comédias sombrias mencionadas na lista das 100 melhores séries da BBC são em língua inglesa e somente uma série cômica em língua não inglesa foi incluída na lista: a francesa Dix Pour Cent.

Paralelamente, diversas séries dramáticas em outros idiomas foram mencionados - "The Bridge" ("A Ponte", no Brasil), Borgen, "La Casa de Papel" e outras, o que sugere que as comédias geralmente são traduzidas com mais dificuldade, especialmente as comédias sombrias, com suas sutilezas.

Isso havia sido confirmado anteriormente: os trocadilhos e as expressões misantrópicas da série "Seinfeld", sensação norte-americana dos anos 1990 que foi evidente precursora das comédias sombrias atuais, representaram um evidente desafio para os tradutores e a audiência internacional de "Seinfeld" foi muito inferior à de "Friends", que era mais simples e leve.

Por isso, muitas comédias para TV fora do mundo de fala inglesa também distorceram os gêneros recentemente. A série japonesa "Hibana: Spark" usa seu ambiente fundamentalmente cômico —dois comediantes que trabalham juntos — para se tornar um tanto existencial. A série sul-coreana "One More Time" é uma comédia romântica em forma de novela sobre um músico preso em um laço temporal. A francesa "A Very Secret Service" é uma paródia do gênero de espionagem e a sueca "Fallet" representa o nórdico sombrio.

Estas séries não são tão sombrias quanto "Succession", mas parece provável que haverá outras misturas de gêneros internacionais à medida que o streaming oferecer acesso a programas de todos os países para o público internacional.

E, é claro, existem muitas exceções para a mudança das séries cômicas para o lado sombrio no século 21.

"30 Rock"/"Um Maluco na TV" tinha um tom satírico cínico, mas ainda era essencialmente uma "sitcom" tradicional no local de trabalho, recheada com mais piadas por segundo que talvez qualquer outro programa na história da TV. "Parks and Recreation" ("Confusões de Leslie", no Brasil) oferecia uma clara visão leve da política local na era Obama. E a série canadense "Schitt's Creek" atingiu inicialmente uma postura irônica - com aquelas pessoas desagradáveis que haviam sido ricas e agora eram forçadas a viver no meio do nada - para depois contradizer essa imagem a todo momento, ao criar uma visão utópica da vida nas cidades pequenas que recebem todas as pessoas.

A questão real não é se a leveza ou o aspecto sombrio irá prevalecer nas comédias para TV à medida que avança o século 21. "BoJack Horseman" é o exemplo perfeito de como a comédia real pura - boba, engraçada, simplória e animada - pode se transformar em uma delicada meditação sobre o sentido da vida.

Na cena final da série (atenção: spoiler!), BoJack, que saiu da cadeia por um dia para ir a um casamento, senta-se no teto de uma casa com sua amiga Diane —a mais próxima de uma alma gêmea que ele chegou a conhecer. Ele conta a ela um pouco sobre a vida na prisão e ela encolhe os ombros. "É, mas o que podemos fazer?", diz ele. "A vida não presta e a gente morre, não é?"

"Às vezes", responde ela. "Às vezes a vida não presta e a gente continua vivendo." Pausa. "Mas hoje está uma bela noite, não é?"

"É", diz ele. "Uma bela noite."

O título do episódio é "Nice While it Lasted" (no Brasil, "Bom Enquanto Durou").

Ele traz de volta a antiga questão: quando a distinção entre comédia e drama irá se tornar irrelevante? Quando estaremos prontos para admitir que a via é engraçada e triste, bela e trágica, e que a arte, na sua melhor forma, reflete tudo isso, seja ela qual for?

E até, talvez especialmente, a televisão.

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