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Cristin Milioti em Nova York NYT Jingyu Lin/The New York Time

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Alexis Soloski
The New York Times

Cristin Milioti, 35, não se enxerga como heroína de comédias românticas. E, apesar de já ter estrelado toda uma série de comédias românticas, ela tem mais ou menos razão.

Desde o papel que a levou à atenção da crítica, o de Garota (sim, a personagem é chamada “a garota”) no musical da Broadway “Once”, Milioti ficou conhecida por desmontar ou até eviscerar os clichês narrativos do “e eles viveram felizes para sempre”.

No episódio “USS Callister” de “Black Mirror”, ela faz uma mulher que escreve código de computador e manobra com inteligência para safar-se de um pretendente “incel” (celibatário involuntário –homem que tem raiva de mulheres porque não consegue atrair nenhuma para relacionar-se com ele).

Em um episódio de “Modern Love”, ela faz uma crítica literária que forma um vínculo estável com o porteiro do prédio, não com o pai de seu filho. A moral da história de seu filme de 2015 “Tinha que Ser Você” é que não tinha.

E no perfeito “Palm Springs”, do ano passado, sua personagem usa um loop temporal para trabalhar e superar seus problemas. O romantismo é meramente opcional. “Posso sobreviver muito bem sem você, sabia”, ela diz a Nyles (Andy Samberg) no clímax do filme.

“Made for Love”, uma série nova e muito bizarra da HBO, começa onde a maioria das comédias românticas terminam. Milioti é Hazel, que tem 30 e poucos anos e é casada com Byron (Billy Magnussen), magnata tech bonitão que é tão totalmente bem-sucedido que até mesmo os Elon Musks ou Bill Gates da vida devem se sentir um pouco intimidados. Mas o relacionamento sufoca Hazel.

Escapando, quase por acaso, ela se depara com a confusão, o estresse e as dificuldades de encarar a vida sozinha. Ou melhor, dizendo quase sozinha: Byron implantou um software espião em seu cérebro.

Nos momentos iniciais da série, vemos Hazel surgindo na tela parecendo uma sereia semi-afogada: molhada, descabelada, usando vestido verde escamoso e com a maquiagem borrada. Ela parece radiante, assustada, exausta, confusa, desafiadora e muito mais.

A maioria dos atores parece trabalhar com uma paleta de uma dúzia de emoções, mais ou menos, mas as cores de Milioti são ilimitadas. E, como gosta de utilizar o maior número possível, ela se nega a representar personagens que não sejam plenamente humanos (quando se trata de papéis para mulheres, isso não é exatamente garantido).

“Gosto de representar pessoas complexas”, ela explicou. “Não estou aqui para ser a bolsa na história de um homem.”

Isso foi numa tarde recente, num banco em um píer no Brooklyn Bridge Park, em Nova York, um dos lugares favoritos de Milioti. A promessa da primavera pairava no ar, e Milioti —de óculos de sol, suéter escuro, jeans escuros e máscara cirúrgica— estava observando o que chama de “o desfile de cães” passar à sua frente.

Ela não levava bolsa. O acessório que escolhera para o dia: um anel de dois dedos que parece presas de vampiro. De porte mignon, discretamente selvagem, dotada de um senso de humor que tanto pode enveredar pelo humor boboca quanto pela ironia, Milioti não é a “garota da casa ao lado”. Ela mais parece a garota que você não sabia que estava morando no sótão.

Magnussen, que a conhece há mais de uma década, a descreveu como uma das mulheres mais engraçadas, mais elegantes e mais interessantes que ele já conheceu. “Ela é simplesmente muito divertida”, explicou. E ela é, sim. Especialmente se você é cachorro. “Você é novo aqui”, ela disse em voz sedutora para um cachorrinho cor de mel que apareceu no píer. “Seja bem-vindo. Isso é atenção suficiente para você?” E então voltou a falar de sitcoms na TV e do patriarcado.

“Ela é uma pessoa complexa e multifacetada na vida real”, disse Samberg. “E leva isso a todos seus papéis.” Quando era adolescente em Nova Jersey, Milioti fez testes para cada musical, cada peça de teatro colegial que aparecia.

“Sempre adorei estar sobre o palco, sempre adorei mergulhar fundo nos papéis”, ela contou. Mas não em todos os papéis. Seu comentário curto e grosso sobre Sarah Browne, a heroína charmosa e inocente que representou em “Guys and Dolls”: “Eca!”.

Quem combinaria melhor com sua vibe? The Artful Dodger (o Matreiro), um papel pelo qual ela lutou, principalmente porque todos os papéis femininos em “Oliver!” são péssimos. Milioti estudou teatro na New York University, mas só ficou um ano e meio no curso. “Eu estava super impaciente”, explicou. “Só estava podendo atuar por uns 15 minutos por semana.”

Assim, foi trabalhar como garçonete e como babá. Levava cachorros para passear e trabalhou numa fábrica de biscoitos para cães. Ela começou a trabalhar off-Broadway, fazendo papéis multidimensionais —em shows como “Crooked”, “Stunning”, “That Face”— que aproveitavam ao máximo sua aparência de menina de olhos grandes e seu coração sombrio oculto por baixo.

Como o teatro off-Broadway paga pouco, ela continuou a levar cachorros para passear. Houve também muitos testes para trabalhos do tipo “vítima da semana”, “garota universitária morta”, que ela nunca parecia conseguir marcar. Ela simplesmente não tinha a vibe correta para representar uma vítima sem rosto.

Nos primeiros workshops para “Once”, musical baseado no filme de John Carney, Milioti fez um papel coadjuvante. Papéis de protagonista romântica (xô Sarah Brown, de “Guys and Dolls”), não eram seu negócio.

Mas John Tiffany, o diretor do musical, pensava diferente. Ele achou Milioti engraçada e volúvel. “E incrivelmente comovente de um jeito realmente generoso”, comentou. (Milioti havia ligado para ele na noite antes de nossa conversa, ele contou, e o incentivado a criticá-la redondamente. Ele se recusou.)

Quando o musical foi para Cambridge, Massachusetts, em apresentação experimental, Tiffany convenceu os produtores que Milioti devia representar a Garota, o papel que ela acabaria fazendo na Broadway por mais de um ano.

Esse trabalho a levou a um papel recorrente na temporada final de “How I Met Your Mother” —ela fez a Mãe— e a um papel de protagonista na rom-com “A to Z”, da NBC, que teve vida curta.

Tendo conquistado alguma segurança financeira, Milioti começou novamente a buscar papéis que não a fizessem sentir-se “como soldado involuntário do patriarcado”. Ela queria papéis que a deixassem tocar “a estranheza, a selvageria e as selvas interiores” da natureza humana, explicou.

Papéis que lhe permitissem comunicar a estranheza essencial de comportar-se como uma pessoa, especialmente uma pessoa mulher; papéis nos quais ela nunca precisasse pedir desculpas pelas arestas de uma personagem ou suas escolhas dúbias.

Milioti adora escolhas dúbias. Ela adora refletir sobre como e por que uma pessoa as faria. No set ou sobre o palco, ela mergulha de cabeça nas facetas mais briguentas, hostis ou desagradáveis de qualquer papel, sem ego nem seriedade descabida. (Ela é conhecida por pontuar momentos sombrios com sons de peido ou com um gancho de pirata emprestado temporariamente do departamento de acessórios.) “Ela quer que as coisas explodam”, disse Samberg.

Quando ela quis trabalhar em “Palm Springs”, jornalistas às vezes perguntavam por que ela fez o papel de Sarah, a irmã nervosa, volátil e traumatizada da noiva. Milioti precisou fazer um esforço para não revirar os olhos.

Afinal, quando papéis desse tipo aparecem, toda atriz digna do nome quer fazê-los. E as audições para o papel são um verdadeiro banho de sangue, diz Milioti. “Isso porque, infelizmente, é raríssimo uma mulher ter a oportunidade de representar todas essas coisas diferentes.”

Milioti não precisou fazer um teste para “Palm Springs” —o papel foi entregue a ela após uma única reunião”—, nem para “Made for Love”, outro papel multifacetado. “Gosto de dizer, brincando, que ‘Made for Love’ foi feito para Milioti”, diz Alissa Nutting, autora do romance sobre o qual a série se baseia e produtora executiva da série.

Nutting sabia que Milioti consegue fazer drama além de comédia, instantaneamente. “Nunca antes vi uma atriz que é capaz de indicar aspas com os olhos”, diz. Milioti leu o roteiro do piloto e assinou o contrato na hora. O esforço anárquico de Hazel para ganhar a liberdade, e as escolhas questionáveis e às vezes violentas que ela faz ao longo do caminho, calaram fundo com ela.

Em “Made for Love”, Hazel vive um despertar. De uma figura arrumadíssima que atua como assistente constante de seu marido, ostentando o sorriso artificial de uma mulher que vive como refém, ela se transforma em fugitiva corajosa, suja, manchada de sangue, capaz de brandir um facão quando é preciso —ou um guarda-chuva ou um taco de golfe.

Pergunto se Milioti já passou por alguma coisa desse tipo ela própria, em sua vida pessoal ou profissional. Houve alguma experiência que ela viveu que a levou a rejeitar aqueles papéis de “bolsa” ou “soldada”? Ela não quis dizer. (Ela já falou de sua vida pessoal algumas vezes no passado, mas hoje opta por uma resposta que parece inspirada em Bartleby [do conto “Bartleby, o Escriturário”]: “Prefiro não dizer”).

Mas ela deu uma resposta mais abrangente, dizendo que hoje muitas mulheres questionam os papéis que a sociedade, e não apenas Hollywood, lhes pede para representar. Porque devemos todas ser as heroínas de nossas próprias histórias complexas, e não a universitária enfiada dentro de uma mala.

“Estamos todas refletindo ‘uau, foi isso que sempre nos fizeram aceitar?’”, ela explicou. “Nos alimentaram com uma dieta constante de m.... Estamos todas despertando de repente e perguntando ‘por que estamos nos sentindo tão mal? E por que essas coisas são permitidas?’. “Isso, para mim, é emocionante. E já não era sem tempo.”

Tradução de Clara Allain.

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