'Maravilhosa Sra. Maisel' expande o uso da dança e vai do exagerado ao intimista
Terceira temporada da série teve indicações, mas não levou Emmy
“Dançar... Quando é que vamos ter isso de volta?”, perguntou Amy Sherman-Palladino. “Legal conversar com você sobre algo que não existe mais”.
Embora a dança continue a existir, a versão ao vivo se tornou difícil de encontrar em meio à pandemia do coronavírus. Por enquanto, ela vive nas telas.
Sherman-Palladino, roteirista, diretora e criadora de “Maravilhosa Sra. Maisel”, vem fazendo sua parte há anos, como líder de um movimento extraoficial de preservação da dança. Em seu mundo, o diálogo e o movimento se entrelaçam, sempre enfatizando a ideia de que coreografia não é apenas uma possibilidade, na televisão, mas uma experiência reluzente e transformadora.
E portanto, sim, estamos em compasso de espera no que tange a voltar a assistir a espetáculos de dança ao vivo. Mas até que isso aconteça, Sherman-Palladino nos oferece opções. Sua série –cuja terceira temporada foi indicada para múltiplos prêmios Emmy– está constantemente repleta de dança. E sempre podemos voltar a assistir “Bunheads”, e lamentar o fato de que esse trabalho anterior da roteirista tenha sido cancelado depois de apenas uma temporada.
A dança é parte de tudo que Sherman-Palladino toca, direta ou indiretamente, e isso inclui até “Gilmore Girls”. Você se lembra do concurso de dança em “They Shoot Gilmores, Don’t They?” E daquele recital no estúdio de Miss Patty? E do balé que Rory teve de resenhar para o jornal da universidade? (Jamais me senti mais compreendida.) Isso tudo levou a “Bunheads”, uma série na qual a dança era tudo. Era verdadeira, e era engraçada –porque Sherman-Palladino sabe que dançarinos são as duas coisas.
O que mais “Maisel” tem em comum com “Bunheads?” Para Sherman-Palladino e seu marido e parceiro criativo, Daniel Palladino, um dos elementos é a coreógrafa Marguerite Derricks. “Nós chamamos Marguerite de nossa arma secreta, porque é quase como se tivéssemos um diretor a mais no grupo”, disse Sherman-Palladino. “Ela sabe como encenar dança diante de uma câmera, já que isso é bem diferente de dançar no palco –não é algo realizado no proscênio, mas sim em 3D. É tudo que o mundo envolve”.
A terceira temporada de “Maravilhosa Sra. Maisel” se passa no final da década de 1950 e começo da década de 1960, e começa com um show da USO [a organização americana que promove apresentações musicais para militares]. “Eu fiquei pensando qual seria a melhor maneira de matar minha produtora do coração”, disse Sherman-Palladino. “E pensei que, se tivermos de fazer um show da USO, vou querer um número de dança. E vou querer 850 caras na plateia gritando coisas para as dançarinas”.
“Maravilhosa Sra. Maisel” expandiu o uso da dança tanto ao modo convencional quanto de maneiras inovadoras. A série na verdade respira dança, de muitas maneiras. Há aqueles números musicais exagerados, com o fervor e esplendor de um espetáculo da MGM, mas também duetos íntimos —os dançarinos à beira do Sena na temporada dois e a dança sensual de Midge Maisel e Lenny Bruce na temporada seguinte.
As danças servem para desacelerar o tempo, em determinados momentos, enquanto os movimentos de câmera coreografados da série –corpos e vestidos varrendo as calçadas da cidade, os apartamentos, as lojas– aceleram o ritmo, tornam o movimento mais enfático. É como se um grupo de dança, em trajes civis, tivesse tomado as ruas de Manhattan.
Mas a série toda me parece uma apresentação de dança. É útil que Sherman-Palladino, que estudou balé, ainda sinta tanta falta de dançar, das aulas “aos testes idiotas de elenco”, nos quais, ela conta, “você fica na fila por 12 horas e aí tem o direito de dançar por 30 minutos. E depois volta para casa e fica quebrando a cabeça para descobrir como pagar o aluguel”.
E a dança é algo que serve à cabeça tanto quanto serve ao corpo, ela disse. “Há uma disciplina e uma clareza mental em repetir, repetir, repetir um passo, e acho que isso seja importante para a vida em geral”.
Antes do Emmy, Sherman-Palladino e Derricks, que estudou na Escola Nacional de Balé do Canadá e coreografou diversos filmes e programas de TV, entre os quais “Little Miss Sunshine” e “Glow”, falaram sobre o movimento constante em “Mrs. Maisel”. Abaixo, trechos editados da conversa.
Por que a dança é tão importante para você?
Sherman-Palladino: Fui dançarina. Chegou um ponto em que eu estava sempre com roupas de dança. Acho que tudo que faço é filtrado por essa lente. Escrevo tendo em mente uma visão coreográfica e rítmica da cena. E acho que meus personagens tendem a ter uma energia que, mesmo que estejam só andando pela rua, lhes dá como que um ritmo interno. Depois, quando comecei a dirigir, eu realmente compreendi que enfim podia dizer à minha mãe que todas aquelas aulas de balé tinham valido a pena. Elas foram canalizadas de uma maneira incomum, mas eu com certeza dirijo como uma dançarina.
E você trabalha com dançarinos. Por quê?
Sherman-Palladino: Dança é uma forma de arte que, a menos que você seja Mikhail Baryshnikov, não vai torná-lo rico. Temos raridades como Misty Copeland, que conquistam atenção suficiente para conquistar um contrato para escrever um livro e se encontrar com Prince. A maioria dos dançarinos coloca toda a sua vida e seu tempo em seu ser físico, porque quando você é dançarino, isso não acontece apenas enquanto você está na aula ou no ensaio, ou na apresentação; mesmo em casa, seu corpo é seu instrumento.
Assim, não há como tirar uma folga do trabalho, porque ele está sempre com você.
Em muitas cenas, existe uma coreografia em percorrer e ocupar o espaço. Você usa dançarinos em cenas que mostram pessoas caminhando, não é?
Sherman-Palladino: Nós encenamos coisas que as pessoas não imaginam que sejam encenadas. No episódio final da temporada, colocamos nossa garota Bailey [De Young, que interpreta Imogene) caminhando pela rua em câmera lenta ao som de Nina Simone. Estamos falando de dançarinos. Não uso figurantes, porque precisamos do lado físico, do movimento, de pessoas, de presença. Não gosto de chamar essas pessoas de figurantes, porque elas têm parte muito importante em nosso processo.
Derricks: Para mim, o mais divertido é que chego e Amy me diz onde vai acontecer o “pas de deux” da câmera. Ela me diz que a câmera vai se mover de tal maneira, e meio que dança ao redor e me mostra. E eu posiciono os dançarinos de fundo musicalmente e os coreografo –mesmo que eles apenas rodopiem por trás da cena ao caminhar, tudo se torna um lindo “Lago dos Cisnes”, na cena. Com Amy, é sempre como se ela e eu estivéssemos dançando juntas.
No último episódio da temporada, Shy Baldwin aparece no [teatro] Apollo e a apresentação dele inclui um solo notável, e muito sexy, de RaJahnae Patterson. Quais foram suas ideias para o solo?
Derricks: Amy escreveu que ela começava no palco com a perna erguida acima da cabeça, e ficava lá. E eu pensei comigo mesma que sabia exatamente para onde a cena iria. Pesquisei as dançarinas negras de jazz daquele período, e intensifiquei a coisa, levando-a para um patamar que eu sabia que RaJahnae era capaz de sustentar. Ela faz com que tudo pareça muito fácil, e é incrivelmente sexy sem se esforçar demais.
Que tipo de pesquisa você fez para o dueto de sapateado dos irmãos Hines?
Derricks: Maurice Hines foi um dos meus primeiros amigos quando me mudei para Nova York, e é uma espécie de irmão mais velho para mim, e por isso, quando descobri que ia homenagear Maurice e Gregory, liguei para Maurice. Falei com ele sobre aquele período. Mergulhei fundo para ter certeza de que o sapateado que coreografei era o que eles faziam quando eram adolescentes, em contraposição ao trabalho posterior deles como adultos. Para mim, o que facilitou as coisas foram os irmãos Foreman [a cena é dançada pelos irmãos Jaden e Ellis Foreman] –são dançarinos jovens mas muito bem educados sobre os mestres do passado.
Os irmãos Foreman sabiam muita coisa sobre os irmãos Hines?
Derricks: Eles eram grandes fãs, e conheciam o estilo. Um dos irmãos tem um passo em que ele sapateia apoiado nos dedos do pé, e aponta para baixo. Quando os dois desafiavam um ao outro no palco, Maurice costumava ser muito vistoso, exibido. Os Foreman sabiam disso. Conheciam a história, e quando chegaram a incorporaram imediatamente.
Temos tanta dança digital, agora – a qualidade nem sempre é ótima, e não há muita criatividade. Vocês considerariam fazer um filme, por exemplo, do Balé da Cidade de Nova York dançando um trabalho de George Balanchine?
Sherman-Palladino: Com certeza. Não há coisa alguma no mundo da dança que eu não teria interesse em fazer. Eu recentemente assisti ao filme “Pina, de novo. A forma pela qual eles capturaram aquelas danças foi tão fabulosa. É muito bom ficar sentado em um teatro lindo e assistir a um balé maravilhoso. E quero muito que possamos voltar a fazê-lo, pode acreditar.
É no teatro que tudo acontece. Tudo que faço nas telas acontece porque vivo no teatro. Tudo que respiro acontece porque eu vi aquilo, assisti aquilo, vivi aquilo por algum tempo. E isso é um desafio a você e à câmera, dar às pessoas a mesma sensação.
E pode ser feito?
Sherman-Palladino: É impossível causar a mesma sensação. Não deveríamos tentar reproduzir aquilo que as pessoas sentem no teatro ao vivo. Acho que isso deveria ser algo separado, mas de alguma forma nos inspira na hora de mover a câmera.
Quando você assiste a um espetáculo ao vivo, pensa nele em termos de musicalidade? Vejo isso com muita clareza em seu trabalho, na forma pela qual corpos e diálogos se encaixam – é um feito coreográfico.
Sherman-Palladino: É diferente a cada vez. Às vezes me frustro com os coristas das Broadway porque sinto que os dançarinos não têm liberdade suficiente ou treinamento suficiente. Depende do que eles estejam oferecendo, mas há momentos em que você entra e vai embora com uma sensação de “meu Deus, como capturar essa sensação?” Na tela é difícil, porque a energia é diferente.
Uma coisa eu posso dizer: O último “John Wick” era um filme ridiculamente violento, mas era como um balé coreografado de maneira sensacional. A sequência da faca no filme era como um filme de dança. Assista a “Bunheads” e depois a “John Wick” –está aí um programa duplo que ninguém conseguiria compreender.
Tradução de Paulo Migliacci
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