Após câncer, Michael Douglas interpreta seu primeiro protagonista na TV desde os anos 1970
Ator vive um homem decadente em 'The Kominsky Method', da Netflix
Sandy Kominsky está longe de ser um homem na flor da idade. No passado professor de teatro muito procurado pelos astros, agora ele ganha a vida treinado aspirantes a atores para audições em sitcoms ou comerciais de xampu. Ele teve três casamentos fracassados, sua filha adulta mal o suporta, e seu corpo parece estar se rebelando contra ele.
Por isso, quando Michael Douglas foi convidado para interpretar o rabugento protagonista de "The Kominsky Method", nova série de humor da Netflix, disse que só havia uma maneira de receber a proposta. "Aos 74 anos anos?", ele questionou. "Graciosa e alegremente", disse Douglas. "Eu disse que se eles estavam procurando o que a velhice tem de cômico, eu era o cara certo", acrescentou.
Não é dessa maneira que o público costuma recordá-lo. Nos seus filmes mais conhecidos, thrillers como "Atração Fatal" e "Instinto Selvagem", seus personagens, refinados mas agressivos, vieram a definir uma espécie de machismo americano característico das décadas de 1980 e 1990.
Por mais personagens fracassados e trôpegos que ele tenha interpretado, seu nome estará para sempre associado ao impiedoso retrato de Gordon Gecko, o capitalista implacável que protagoniza "Wall Street", filme dirigido por Oliver Stone.
Se um ele um dia foi onipresente, idolatrado e altamente atraente para os investidores do cinema, Douglas hoje vive em paz com o conhecimento de que essas glórias não duram para sempre. Ele não decaiu de maneira tão radical quanto Kominsky, mas os capítulos recentes de sua vida foram turbulentos.
Depois de superar um câncer, ele fez algumas das interpretações mais calorosas e excêntricas de sua carreira. Também foi acusado de desvios de conduta sexual por uma antiga empregada. Depois de todo esse tempo, não fica claro de que maneira Douglas se percebe, ou se ele tem uma autoimagem estabelecida; aos seus próprios olhos, ele não é um mimado herdeiro do estrelato cinematográfico e tampouco um mestre do universo, perenemente autoconfiante.
Planos de longa duração não são o seu estilo. "Jamais pensei com muita antecedência no que faria a seguir", disse Douglas. Assim, em um momento de fluxo em sua carreira e de incerteza no setor de entretenimento, por que não aceitar seu primeiro papel regular de televisão desde a década de 1970 –o de um septuagenário maltrapilho, bilioso e com problemas de próstata?
Nas palavras de Douglas, "eu consigo compreender um cara cuja vida não saiu exatamente como ele esperava". Nada parecia estar fora de controle na vida de Douglas, no dia da entrevista, realizada em uma tarde de outubro no suntuoso apartamento em Central Park West em que ele vive há 30 anos.
O ator estava acomodado a um canto escuro da sala de visitas, e a luz que entrava por uma janela próxima iluminava apenas seus cabelos prateados e o sorriso em seu rosto. Recordações pessoais, como seus dois Oscars, por "Wall Street" e "Um Estranho no Ninho" (do qual ele foi um dos produtores) brilham em uma estante.
As paredes estão decoradas com recordações de seus famosos pais: cartazes de filmes clássicos como "O Rio da Aventura", estrelado por seu pai, e uma edição de 1943 da revista Life que traz na capa uma foto de sua mãe, Diana Douglas, atriz e aristocrata das ilhas Bermudas.
A despeito do que podem parecer vantagens evidentes, Michael Douglas disse que sua carreira começou aos trancos e barrancos, e o processo de estabelecê-la durou décadas. Ele enumera os marcos: os anos em que trabalhou sob a orientação do ator Karl Malden na série policial "The Streets of San Francisco"; seus esforços para conseguir colocar "Um Estranho no Ninho" nas telas, depois de o seu pai adquirir os direitos de adaptação do romance de Ken Kesey e quase desistir do projeto; o Oscar que ganhou como ator por "Wall Street - Poder e Cobiça", em 1988.
Foi no momento do Oscar, disse Douglas, que ele enfim sentiu ter "deixado a sombra do meu pai".
"Isso me deu uma confiança que antes não tinha", disse. Ele acrescentou, baixinho: "Estabeleci um patamar bem elevado para mim".
Velhos amigos dizem que Douglas sempre teve um espírito anárquico. Danny DeVito, que mais tarde trabalharia com ele em "Um Estranho no Ninho" e em filmes como "Tudo por Uma Esmeralda" e "A Guerra dos Roses", recorda ter sido apresentado ao colega em uma conferência nacional de dramaturgia em Waterford, Connecticut, na década de 1960.
Quando os dois se ofereceram para buscar cerveja para os colegas, DeVito disse que "trocamos um olhar e eu logo perguntei se ele fumava maconha. Ele respondeu que sim, e somos amigos desde então".
Douglas sempre foi audacioso –"eu nunca tinha nadado nu em uma piscina antes de conhecer Michael", disse DeVito– mas também um sujeito centrado e solidário.
DeVito diz que as origens de Douglas como filho de um casal divorciado são muitas vezes desconsideradas. Kirk e Diana Douglas se separaram quando ele tinha cinco anos, e o segundo marido dela, Bill Darrid, com quem Diana se casou em 1956, foi uma importante influência na vida dele.
"Tenho certeza de que era legal ter Kirk como pai", disse DeVito, "Mas muitos dos valores que Michael sempre carregou com ele vieram de sua mãe e do segundo marido dela. A sensibilidade dele, sua consideração para com os outros, vem da maneira pela qual foi criado".
Hoje, Douglas tem três filhos: Cameron, de seu casamento anterior com Diandra Luker; e a filha Carys e filho Dylan, de seu casamento com Catherine Zeta-Jones. Ele também sobreviveu a um câncer estágio 4 –"um grande tumor, do tamanho de uma amêndoa, na base de minha língua", é a forma pela qual Douglas descreve o problema. "Tomamos a decisão estratégica de dizer que era um câncer de garganta", ele disse, "porque as conotações de ter a língua removida e não poder mais falar não eram agradáveis".
Douglas temia que seu problema de saúde o manchasse aos olhos da indústria do cinema –"isso se eu sobrevivesse, e continuasse podendo falar", ele disse. Mas o ator retomou sua carreira interpretando Liberace em "Behind the Candelabra", filme de Steven Soderbergh para a rede HBO de TV a cabo, em 2013.
Sua interpretação lhe valeu um prêmio Emmy, mas ele não se entusiasmou muito com as oportunidades que surgiram em seguida –quase todas propostas para filmes independentes de baixo orçamento.
E então surgiu "The Kominsky Method". Chuck Lorre, criador da série, é mais conhecido por sitcoms como "The Big Bang Theory" e "Mom", que fazem sucesso mas dificilmente se desviam das tradições das séries de humor de TV americanas filmadas em estúdio.
Em "The Kominsky Method", disse Lorre, ele queria um programa –filmado com câmera única e sem trilha de risadas– que lhe permitisse tratar de questões como a velhice e a mortalidade, que usualmente não constam do cardápio do humor de situação.
"Acabo de completar 66 anos, e nasci programado para ver o humor que existe nisso", disse Lorre. "Dentro de um corpo envelhecido existe uma testemunha que ainda acredita ter 18 anos. Há a a dissonância cognitiva gerada por todas essas coisas que estão acontecendo comigo sem eu saber bem. Quando não estou chorando, é engraçado."
Cerca de um ano atrás, Lorre começou a delinear o relacionamento entre os dois personagens principais da série –um poderoso agente do mundo do entretenimento (interpretado por Alan Arkin) cuja mulher morre de câncer no primeiro episódio, e Kominsky, que por conta disso se vê forçado a perceber que o tempo que lhe resta na Terra, além de degradante, será também limitado.
Lorre disse que logo pensou em Douglas para o papel. "Há uma elegância sublime na maneira pela qual ele se apresenta ao mundo", disse o produtor. "Somando seu talento à sua experiência, ele saberia bem como interpretar cada momento –tanto os pungentes quanto os humorísticos–, com grande finesse e de maneira nuançada".
Arkin, que não conhecia Douglas, inicialmente não sabia como classificá-lo. Mas ao longo das gravações dos oito episódios da primeira temporada da série, descobriu um homem muito diferente de seus papéis no cinema. "No cinema, ele tem um ar muito determinado", disse Arkin. "Há algo de muito determinado em sua aparência –'é assim que eu sou, é assim que as coisas vão ser'".
Na série, disse Arkin, Douglas foi muito "flexível e presente, e terminei me divertindo muito com ele". O colega acrescentou que "há algo de muito terno nele nessa série, que acho que eu nunca tinha visto em seu trabalho –uma vulnerabilidade muito atraente".
Outras pessoas que viram um descompasso entre a personalidade de Douglas nas telas e fora delas discordam dessa analise. Em janeiro, Susan Braudy, jornalista e executiva cinematográfica que dirigiu o escritório da produtora de filmes de Douglas em Nova York no final da década de 1980, o acusou de conduta sexual indevida.
Braudy disse à revista Hollywood Reporter que Douglas costumava usar linguagem vulgar e sexualmente agressiva ao falar com ela, e que certa vez se masturbou em sua presença. Antes que as acusações viessem à tona, Douglas deu uma entrevista à Deadline, uma publicação concorrente, para negá-las.
Ele me disse em nossa conversa que as afirmações de Braudy são "completamente mentira", e que isso havia causado "choque e dor" a ele e sua família. "No que tange às mulheres, minha carreira fala por si", Douglas me disse. "O histórico do sucesso que mulheres tiveram nos filmes que fizeram comigo fala por si".
Braudy rebateu, via email, dizendo que "Michael Douglas é um grande ator e um operador superastucioso". Ela acrescentou que "ele achava que seu poder era tão maior que o meu que ele poderia fazer gracinhas sexuais nojentas/indesejadas sem sofrer consequências, e até se divertir com meu extremo desconforto".
Douglas disse acreditar que sua decisão de "se antecipar ao estouro da história" havia provado ser "a melhor coisa", e ele prosseguiu com seu trabalho aparentemente sem perturbações.
O ator ganhou uma estrela na calçada da fama de Hollywood, em novembro, não muito longe do local em que seu pai, Kirk, ganhou uma estrela em 1960. Ele também é um dos muitos atores que se beneficiaram dos filmes sobre os personagens Marvel: interpreta Hank Pym, um valente cientista envelhecido que serve como mentor ao personagem de Paul Rudd nos filmes da série "Homem-Formiga".
Douglas está esperando para saber se haverá uma nova temporada de "The Kominsky Method", e continua a encontrar novas maneiras de se comunicar com seu ilustre pai, que está com 101 anos. "Ele descobriu o FaceTime", disse Douglas.
Recordando uma conversa entre eles que descreve como típica, Michael Douglas interpretou os papéis de pai e de filho. "Eu digo, 'pai, você um dia imaginou que teria um filho que está celebrando 50 anos de show business'? Pausa longa". Como Kirk, ele responde: "O que você disse?" Voltando a própria voz, Michael rebate, com orgulho: "Você ouviu muito bem".
Tradução de PAULO MIGLIACCI
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