Como Britney Spears usou a dança para afirmar seu poder e falar com os fãs
Mesmo quando esquisitos, passos da cantora sempre foram um revide
Mesmo quando esquisitos, passos da cantora sempre foram um revide
Quando Britney Spears depôs em uma audiência diante do Tribunal Superior de Los Angeles em junho de 2021, ela revelou de que maneira os responsáveis por sua tutela governaram rigorosamente a sua vida durante 13 anos, e definiu o arranjo como "abusivo". Mas também enfatizou uma forma que sempre teve de reter algum controle. Ela continuou a dançar.
Spears disse que criava "a maior parte de minhas coreografias", quando estava falando dos ensaios, em 2018, para uma temporada de shows em Las Vegas que teria o título "Britney Domination" mas terminou cancelada. "Com isso, quero dizer que eu desenvolvia as coreografias e as ensinava pessoalmente aos meus dançarinos".
Há "toneladas de vídeos" dos ensaios para o espetáculo na internet, ela disse, acrescentando que "eu não era só boa nisso: eu era ótima".
Foi uma maneira forte de lembrar àqueles que a ouviam da confiança que Spears sempre transmitiu, nos palcos, ao longo de toda a sua carreira. Dançando, Spears mantinha controle completo de seu corpo, que de outra forma era assunto de constante escrutínio –sobre sua virgindade, seu peso, seu guarda-roupa. Por meio do movimento, ela conjurava um mundo de sua própria criação, no qual ela era de fato a chefe.
Com seus gestos expansivos de braços, rodopios rápidos e destreza abdominal, Spears sempre usou a dança para comunicar sua força. Brian Friedman, o coreógrafo responsável por alguns dos números de dança mais famosos da carreira da cantora, apontou que houve uma mudança visível em sua abordagem com relação à dança depois que a tutela foi colocada em vigor, em 2008.
"Acho que aquela era a maneira de ela demonstrar que estava em controle de alguma coisa, porque havia tantas coisas sobre as quais ela não tinha controle algum", disse Friedman em uma entrevista por telefone. "Por isso, poder chegar o estúdio e dizer que não queria fazer isso, queria fazer aquilo, e que ela desejava criar os seus passos de dança era algo que dava a ela alguma forma de poder".
Quando Spears anunciou um "hiato por prazo indefinido" em seu trabalho, no começo de 2019, ela começou a postar vídeos no Instagram que a mostravam dançando. A maioria dos clipes a mostravam rodopiando sozinha, em um estilo solto e claramente improvisado, no piso de mármore de sua casa na Califórnia.
Nos vídeos, ela olha para a câmera diretamente, e só desvia o olhar para piruetas ou para jogar o cabelo, ocasionalmente. Não são movimentos de uma artista de palco experiente ou de uma estrela pop; são passos mais experimentais, como se ela ainda estivesse à procura do movimento certo, e não tentando repetir um passo para chegar à perfeição.
Sob o regime de tutela, os vídeos de Spears se tornaram tema de debate e de especulações. Enquanto alguns fãs os aplaudiam, outros se sentiam incomodados pela falta de estilo e pelo olhar fixo que ela exibia. "Alguém mais se sente estranho ou desconfortável ao assistir a isso?", perguntou uma pessoa nos comentários de um dos vídeos, em fevereiro.
Para Spears, porém, o ponto que ela tinha a expor era simples: o objetivo era "voltar a encontrar meu amor pela dança", ela escreveu em uma postagem de março. Em outras mensagens, ela disse que dançava daquele jeito por até três horas ao dia, com os pés protegidos por faixas para evitar bolhas.
Para dançarinos e coreógrafos que trabalharam com Spears, o foco dela em dança, no Instagram, faz todo sentido. "Em um período de sua vida em que ela não tinha liberdade, isso lhe deu liberdade", disse Friedman.
Compartilhar suas sessões de dança improvisadas também permitia que ela se conectasse diretamente com os fãs. Brooke Lipton, que dançou com Spears entre 2001 e 2008, disse em entrevista por telefone que "a dança dizia ao mundo que ela estava precisando de ajuda –sem mencionar o assunto diretamente, porque estava proibida".
Se Spears ainda é capaz de ocasionais "fouettés", piruetas sobre uma perna só, é porque passou a vida ensaiando em um estúdio de dança. Lipton, Friedman e outros dizem que a cantora tinha alcance e dedicação semelhantes aos dos dançarinos profissionais, e que isso vinha acompanhado por um talento quase sobrenatural para aprender coreografias rapidamente.
"Ela cresceu dançando", disse Tania Barton, que começou dançando em shopping centers com a estrela incipiente, em 1998. "Há artistas que dançam em determinadas partes de um show. Há artistas que se movimentam bem naturalmente. E há pessoas como Britney, que é realmente capaz de dançar tão bem quanto os dançarinos que a acompanham".
A atenção e o cuidado de Spears à maneira pela qual ela se apresenta quando em movimento revelam que ela compreende seu corpo da maneira que um dançarino faz –como instrumento artístico. Coreógrafos de primeira linha já criaram números de dança para ela, assim como para outras estrelas pop. A diferença, disse Elizabeth Bergman, que pesquisa sobre dança comercial, em entrevista por telefone, "é a maneira pela qual ela executa as coreografias".
Nos anos anteriores à tutela, Spears escolhia com muito cuidado os coreógrafos com quem trabalhava. Valerie Moise, também conhecida como Raistalla, que trabalhou com Spears em shows e vídeos em 2008 e 2009, aponta que essas colaborações contribuíram para a duradoura popularidade do jazz funk, conhecido por seus movimentos complicados e precisos.
"Esse estilo é praticamente uma cultura para ela", disse Moise em uma entrevista por telefone. "Acentua a maneira pela qual ela deseja se expressar". E Spears fez mais do simplesmente levar adiante a tradição de outros artistas pop que eram conhecidos como bons dançarinos, antes dela.
"É claro que tivemos Madonna, Michael e Janet, e eles eram fantásticos", disse Lipton. "Mas a dança estava evoluindo em um momento em que Wade e Brian estavam expandindo as expectativas quanto ao que dançarinos podem fazer", ela disse, mencionando Wade Robson e Friedman, dois dos coreógrafos com quem Spears colaborou mais frequentemente. Os números de dança deles eram mais rápidos que os da geração anterior, com mais movimento e ação por compasso. "Todos os compassos estavam sendo ocupados", disse Lipton.
Ao aprender coreografias criadas por terceiros, Spears costumava expressar sua opinião quando algum passo não parecia confortável para seu corpo, e de vez em quando sugeria movimentos próprios. "Ela era a chefe, completamente", disse Baron sobre Spears no começo de sua carreira. "Não digo isso de um jeito negativo. Mas se não gostava de alguma coisa, deixava isso bem claro".
Desde cedo, Spears reconhecia que a dança é um meio no qual não é possível fraudar presença ou talento artístico. "Quando você dança, não basta fazer um passo; você tem de senti-lo", ela disse aos 12 anos, quando era estrela de The Mickey Mouse Club.
Randy Connor, que coreografou a dança de Spears no clássico vídeo de "… Baby One More Time", disse acreditar que a capacidade dela para transmitir sentimentos com e por meio do corpo era parte importante de seu atrativo inicial como estrela. "Isso ecoava fortemente em muita gente, porque ela se movimentava com muita convicção", ele disse em entrevista por telefone.
Surgindo em um setor conhecido pelo artifício, Spears usava a dança como forma de transparência com os fãs. Todo mundo sabe que não há como dublar um passo de dança.
"Era dessa maneira que ela se comunicava de verdade como artista", disse Friedman. Mesmo antes do início da tutela de Spears, ele acrescentou, "ela não podia dizer de verdade tudo que pensava, em público, em entrevistas. Mas quando dançava, não escondia coisa alguma".
As canções de Spears se tornaram hinos de amadurecimento ou de afirmação de identidade para outras pessoas, e aprender seus passos de dança ajudou fãs a explorar aspectos de sua identidade com a mesma ousadia que ela projetava com seu corpo. Imitar suas apresentações permitia que eles "sintam o espírito de Britney", como diz Jack em um episódio da série "Will & Grace", depois que ele ergue os ombros e soca o ar como ela faz na coreografia de "Oops! … I Did It Again".
Lipton enfatiza que Spears escolhia passos de dança que permitiam que qualquer pessoa que estivesse assistindo a acompanhasse.
"Ela fazia a coreografia mas com um pouquinho menos", disse Lipton. "Em um momento em que estávamos todos girando e manobrando, ela só sorria e apontava os dedos em nossa direção, antes de voltar ao passo conosco. Não era algo impossível de reproduzir".
Se Spears e seus fãs abraçavam a força de seu movimento, muitos críticos caminhavam na direção oposta, e frequentemente descreviam sua dança como truque usado para compensar uma falta de talento vocal. Outras estrelas pop jovens como Jessica Simpson e Avril Lavigne se vangloriavam de não dançar, como se isso as tornasse artistas mais autênticas.
Em 2002, a Associated Press identificou uma safra de "anti-Britneys", que supostamente desafiavam a ideia de que "é preciso rebolar em roupas justas para ser sexy e bem sucedida na música pop".
Friedman diz que a dança de Spears era sua arte, e não uma forma de industrializar sex appeal. "Como coreógrafo de Britney por muitos anos, jamais desenvolvi movimentos para satisfazer quaisquer outras pessoas. O objetivo era sempre fazer com que ela se sentisse empoderada em seu corpo".
Em "Britney: For the Record", documentário filmado em 2008, nos dias iniciais da tutela, Spears fala como se já estivesse ciente de como a dança se tornaria importante para ela, depois de ficar submetida ao controle de terceiros.
"Dançar é uma parte imensa de mim e de quem sou. É algo que meu espírito simplesmente precisa fazer", ela diz. "Sem a dança, eu morreria".
Ao defender o fim da tutela, 13 anos mais tarde, ela identificou como um de seus momentos de ruptura uma ocasião específica em que lhe foi negado o direito de controlar seu corpo. Spears declarou que em um ensaio de dança no começo de 2019, quando ela disse que queria mudar um passo na coreografia, foi informada de que não estava cooperando.
Ela expressou sua resposta firmemente no tribunal: "Tenho direito de dizer não a um passo de dança".
Traduzido originalmente do inglês por Paulo Migliacci
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