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Bichos
Descrição de chapéu BBC News Brasil

Por que tanta gente odeia pombos?

Os pombos como os conhecemos tiveram comportamentos modificados por ações humanas

Os pombos são hoje odiados, mas nem sempre foi assim
Os pombos são hoje odiados, mas nem sempre foi assim - Getty Images
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Zaria Gorvett
BBC News Brasil

Estou em um pátio, observando Lisa Davies retirar um conjunto de manicure rosa bebê de sua mochila e abri-lo no colo. O kit conta com uma variedade de pinças e lixas de unha, entre outros elementos. Como um cirurgião arrumando seus instrumentos antes de uma operação, ela passa as mãos sobre os instrumentos e pega uma tesoura de unha.

É uma tarde quente e úmida de domingo em um cemitério no bairro londrino do Soho. Grupos de adolescentes descansam na grama, enquanto homens sem camisa jogam tênis de mesa ao fundo. Mas mais adiante no parque, uma cena de verão menos típica se desenrola. Um grupo de voluntários está reunido em torno de um bando de 50 pombos, observando atentamente suas patas. Um está mancando.

Os pés do jovem pombo estão inchados, presos em um emaranhado de longos e escuros cabelos humanos e fios de algodão —os detritos da vida na cidade, recolhidos ao longo de muitos meses de caminhada ao lado dos pedestres.

Este é um caso clássico de "string foot" (ou corda nos pés, em tradução livre) que, sem ajuda humana, irá gradualmente cortar o fornecimento de sangue aos pés e aos dedos dos pés, até que caiam completamente. Mas esse pombo é um dos sortudos.

Com impressionante confiança e precisão, Davies —uma estudante que tem trabalhado como voluntária com pombos nos últimos 18 meses— estende os braços para a frente e gentilmente tira a ave da multidão.

Ela o prende sob a camiseta que, apropriadamente, tem uma estampa de pombo. Demora cerca de meia hora puxando e cortando cuidadosamente antes que os pelos sejam removidos, e o pássaro possa ser solto em uma enxurrada de penas.

Davies faz parte do grupo London Pigeon String Foot and Rescue (Resgate de pombos com cordas nos pés em Londres, em tradução literal), uma organização que visa ajudar os aproximadamente três milhões de pombos da cidade.

Os voluntários se reúnem todos os domingos, durante todo o ano, para cuidar dos pés mutilados dos pombos espalhados pela cidade. Enquanto pondero sobre essa nobre tarefa, sou arrancada do meu devaneio por uma comoção - na rua abaixo, um homem está perseguindo um pombo "por brincadeira", lançando no ar uma tempestade de pássaros em pânico.

Os pombos urbanos estão entre os animais mais detestados do planeta.

Depois de uma série de mal-entendidos que remontam a décadas, eles se tornaram amplamente considerados sujos, fontes de doenças e semelhantes a "ratos voadores".

As lesões horríveis deles muitas vezes são consequências da existência desesperada e oprimida, e a propensão deles para viver perto dos humanos é por vezes considerada irritante ou anti-higiênica.

Mas nem sempre foi assim. Durante milênios, os pombos foram vistos com respeito e até reverência. Um imperador mongol era um grande fã e transportava cerca de 20 mil pássaros aonde quer que fosse, enquanto o cientista britânico Charles Darwin —que a certa altura tinha um grupo de 90— era supostamente obcecado por eles.

Mas, afinal, como nosso relacionamento com essas criaturas deu tão errado?

EXISTÊNCIA PARALELA

Ao longo da costa rochosa das Hébridas Exteriores (ou Ilhas Ocidentais), um grupo de ilhas no Reino Unido, empoleirados no topo de falésias e edifícios abandonados, encontram-se rostos familiares: cabeças cinzentas com grandes olhos laranja, à espreita dos transeuntes. São os pombos-das-rochas, Columba livia.

Embora estas aves pareçam quase idênticas aos pombos encontrados nas cidades, não são iguais. Este remoto posto avançado escocês tem uma das populações mais selvagens desses pombos do planeta - é um dos últimos lugares onde se agarraram a uma proporção substancial da sua genética ancestral original.

Os pombos vistos nas cidades, por outro lado, são um caso totalmente diferente. Eles pertencem à subespécie Columba livia domestica e são quase exclusivamente descendentes de aves domesticadas, que forneceram um fluxo constante de fugitivos para perambular pelos assentamentos humanos nos últimos 4.000 anos.

Existem variações sutis na ancestralidade das populações de uma região para outra, dependendo das raças específicas tradicionalmente mantidas naquela parte do mundo - em algum momento, no entanto, a árvore genealógica da grande maioria dos pombos leva de volta à mesma origem das aves que convivem com humanos.

Os pombos domésticos confiam extraordinariamente nos humanos e são atraídos para ambientes com alta densidade de pessoas.

Paul Themis, conhecido na comunidade de resgate de vida selvagem como Paul Leous Pigeon, é um reabilitador de pombos de Londres.

Ele ajuda pombos na cidade há 17 anos e foi cofundador do grupo London Pigeon String Foot and Rescue há cinco anos. Até agora, ele estima ter resgatado mais de 1.000 pombos e agora vive com pelo menos 20 ex-pacientes —ele não me diz exatamente quantos— que vagam livremente pela sua casa.

Themis reabilitou pombos ao longo dos anos e explica que há uma diferença marcante no seu comportamento.

Veja o exemplo do pombo-torcaz comum —um pássaro grande e bonito com manchas verdes brancas e iridescentes no pescoço, que habita parques, jardins e bordas de florestas no Reino Unido.

A espécie é distinta dos pombos selvagens, mas são primos próximos —e mostram como os pombos verdadeiramente selvagens veem as pessoas.

"Quando você pega os pombos, eles quase podem ter um ataque cardíaco de tanto medo", diz Themis. "Eles são como qualquer outro pássaro selvagem."

Por outro lado, diz, "os pombos domésticos estão tão acostumados com os humanos que alguns deles nem se incomodam se você os pegar".

Os pombos domésticos têm até uma biologia diferente. Assim como as galinhas, essas aves domesticadas se reproduzem com mais frequência do que as versões selvagens e produzem mais ovos por ninhada.

Na verdade, a vida dos pombos domésticos está intimamente ligada à das pessoas. Caminham pelas ruas humanas —preferem viajar a pé—, abrigam-se nos recantos aconchegantes criados pela arquitetura humana e comem restos de comida humana.

Um estudo descobriu que eles tendem a ser atraídos por estruturas artificiais e locais com atividade humana, enquanto evitam habitats mais tradicionalmente associados à vida selvagem, como áreas de floresta densa.

Como comedores de sementes que ganham a vida num mundo urbano de concreto e aço, pode ser um desafio para os pombos domésticos encontrarem comida suficiente, diz Themis.

Depois de uma série de proibições à alimentação de pombos na Trafalgar Square, em Londres, a partir de 2007, cientistas de agências governamentais confirmaram ao jornal Evening Standard que várias aves tinham morrido de fome.

Os pombos selvagens que andam e balançam a cabeça pelas ruas de São Paulo, Londres, Nova York, Singapura, Cidade do Cabo e outras grandes cidades globais foram criados por humanos. Eles são totalmente dependentes de nós. E ainda assim, nós os rejeitamos.

À medida que minha tarde de domingo com o grupo London Pigeon String Foot and Rescue avança, suas atividades recebem reações dos espectadores que vão desde uma curiosidade confusa —"o que você está fazendo com aquele pombo?"— à hostilidade total.

Os voluntários estão constantemente em alerta para a próxima onda de abusos verbais, especialmente quando alimentam pombos, algo a que muitas pessoas se opõem.

Há inúmeros exemplos de indiferença ou mesmo de crueldade. Os pedestres esbarram nos pombos como se eles não estivessem ali, forçando bandos inteiros a fugirem do caminho. As crianças os perseguem, criando um pânico leve que alguns adultos parecem considerar um esporte aceitável.

Themis, que também foi cofundador da organização de bem-estar animal London Wildlife Protection em 2011, explica que, dado o preconceito generalizado contra os pombos, os voluntários são extremamente cuidadosos com quem pede ajuda.

Muitos veterinários sacrificam pombos feridos como algo natural, diz ele, embora as aves sejam notavelmente resistentes; é comum ver pombos saudáveis que perderam totalmente os dois pés.

E embora os bombeiros muitas vezes concordem em ajudar quando as aves ficam presas em redes, Themis explica que obter permissão dos proprietários dos edifícios para retirar as vítimas pode ser um campo minado diplomático.

UM ERRO SOCIAL

Em 2016, o ódio irracional que muitas pessoas sentem pelos pombos fez Verônica Sevillano pensar sobre o tema. Hoje Sevillano trabalha como professora assistente de Psicologia Social e Ambiental na Universidade Autônoma de Madrid. Mas na época ela trabalhava com Susan Fiske, professora de Psicologia da Universidade de Princeton, em Nova Jersey, que estuda como as pessoas formam preconceitos contra determinados grupos sociais.

Os pesquisadores se perguntaram: assim como temos uma imagem clara, e geralmente falha, das características típicas de, digamos, povos ingleses ou americanos, poderíamos ter preconceitos semelhantes sobre certas espécies de animais?

Juntos, Sevillano e Fiske descobriram que este era realmente o caso.

Tal como as nossas opiniões sobre as diferentes demografias das pessoas, a forma como as espécies animais são percebidas se baseia em duas características: quão competentes elas parecem (ou seja, quais são as suas capacidades) e quão cordiais elas pensavam ser (ou seja, quão favoráveis consideramos as suas intenções em relação a nós). Em essência, aplicamos aos pombos as mesmas regras de julgamento social que aplicamos às pessoas.

Infelizmente para os pombos, eles tendem a ser vistos como extremamente baixos em ambos aspectos. "Não nos importamos de matar ou perseguir estes animais porque as dimensões de cordialidade e competência neste caso são bastante negativas", diz Sevillano.

Sevillano explica que é importante estarmos cientes de que essas crenças enviesada estão sendo aplicadas automaticamente e contribuindo para nossos sentimentos de desprezo.

Isso é especialmente verdade porque, tal como os estereótipos negativos sobre outros grupos marginalizados, a percepção recorrente dos pombos não se baseia na realidade.

Como explica Themis, quase todas as suposições desfavoráveis que temos sobre os pombos são um mito.

Considere a ideia de que os pombos não são inteligentes. Isto é particularmente fácil de refutar, porque eles têm sido amplamente utilizados em estudos comportamentais, que revelaram algumas capacidades notáveis.

Para começar, os pombos têm boa memória: conseguem identificar seres humanos individuais pelas suas características faciais e são capazes de recordar as direções para uma determinada viagem durante anos depois de terem voltado para casa.

Os pombos têm vidas interiores complexas e experimentos revelaram que eles são até capazes de entender conceitos como espaço e tempo —um feito surpreendente, visto que eles não têm córtex cerebral, a camada mais externa e enrugada do cérebro que os humanos usam para compreender tais ideias abstratas.

Mais recentemente, os cientistas descobriram que os pombos domésticos resolvem certos problemas de forma semelhante aos algoritmos de inteligência artificial, usando tentativa e erro para aprender a reconhecer padrões e prever a melhor solução para um determinado problema.

No entanto, se essas elevadas atividades intelectuais fazem os pombos parecerem intimidadores ou preocupantes, podemos ter certeza de que eles têm algumas falhas.

Um estudo descobriu que as aves agem de forma semelhante aos humanos, caindo na conhecida armadilha psicológica de, em diferentes contextos, apostar em uma chance remota de ganhar muito, em vez de uma chance garantida de ganho médio.

Themis diz que os pombos muitas vezes o lembram de cães —eles são inteligentes, sociáveis e podem ser muito afetuosos com as pessoas.

Em 2020, a organização sem fins lucrativos Peta, que defende os direitos dos animais, lançou uma campanha para rebatizar os pombos como "filhotes do céu", uma vez que eles "fazem cocô em público, imploram por comida e reconhecem as pessoas que são legais com eles".

Talvez a acusação mais prejudicial contra os pombos seja a de que estão infestados de doenças —mas mesmo aqui as provas não se confirmam. Por um lado, são altamente resistentes à gripe aviária. Raramente contraem o vírus e, quando o fazem, tendem a ter quantidades baixas no corpo.

Os pombos podem transmitir algumas doenças com potencial de se espalharem para os humanos, embora as infecções sejam relativamente raras. Um estudo descobriu que, entre 1941 e 2004, houve apenas 207 relatos de patógenos transmitidos de pombos para humanos - em qualquer lugar do mundo.

Ao todo, foram 13 mortes registradas. O número real pode ser mais elevado, mas teria de ser maior em várias ordens de grandeza para competir com a escala de infecções de outros animais domesticados —especialmente alguns daqueles com reputações mais favoráveis.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorrem cerca de 59 mil casos de raiva em humanos todos os anos, 99% dos quais são transmitidos por meio de cães —e 100% dos quais são fatais.

Mesmo em países sem o vírus, acredita-se que muitos outros agentes patogênicos podem ser adquiridos de cães e gatos, incluindo a superbactéria MRSA.

Dadas essas comparações, Themis acredita que nosso julgamento em relação aos pombos é equivocado.

UMA REVIRAVOLTA INESPERADA

Uma das coisas mais estranhas sobre a tendência de vilanizar os pombos é que ela é relativamente nova.

Nadira Faber, professora de psicologia na Universidade de Bremen e pesquisadora em filosofia na Universidade de Oxford, explica como atitudes desfavoráveis em relação aos pombos podem ser interpretadas como especismo —uma forma de discriminação baseada na ideia de que algumas espécies são moralmente superiores a outras.

Esse preconceito psicológico geralmente está ligado às categorias em que classificamos os diferentes animais, como "animal de estimação", "alimento" ou "praga". No entanto, Faber sugere que os pombos são um caso interessante.

Os pombos há muito tempo são associados ao amor, à fertilidade e à beleza celestial, por culturas que vão desde os babilônios até os antigos gregos.

No século 16, o imperador mogol Akbar, o Grande, elevou os pombos a um novo nível, com uma vasta população que aprendeu truques de voo elaborados, como cambalhotas e arcos dramáticos.

Na Grã-Bretanha vitoriana, as criaturas ganharam novamente destaque, e clubes de pombos surgiram em todo o país —lugares onde orgulhosos aquaristas podiam exibir raças estranhas e "chiques", como a raça English short-faced tumbler, com seu rosto achatado e aparência de constante surpresa.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os pombos conquistaram ainda mais apreço do público. No Reino Unido, 32 dos mais valentes pombos-oficiais foram premiados com a Medalha Dickin, uma premiação para animais semelhante à Victoria Cross, a mais alta homenagem oferecida a militares britânicos.

Um pombo americano, GI Joe, se tornou famoso em todo o mundo por ter salvado uma vila [ao transportar uma mensagem durante a Segunda Guerra Mundial].

Ainda hoje, as pombas brancas são símbolos de paz e amor em todo o mundo —enquanto os seus primos próximos são vistos como um animal que causa danos.

"É fascinante que a mesma espécie possa, dependendo do momento e da cultura que observamos, ser vista como pertencente a categorias diferentes", diz Faber.

À medida que a minha tarde com o grupo de resgate de pombos de Londres termina, viramos para uma rua lateral onde pessoas sem teto fazem fila para uma refeição gratuita em um carro que está distribuindo comida.

Ao longo do dia, os voluntários ajudaram pelo menos 11 aves, incluindo uma cujo dedo escuro caiu enquanto era examinado - levando a alguma confusão sobre o que deveria ser feito com esse elemento macabro (no fim, alguém reivindicou para sua coleção).

Nos sentamos no meio-fio enquanto um pombo que se arrastava com os dois pés amarrados era cuidado.

O sol estava forte, todos estavam cansados e parece que o trabalho vai demorar pelo menos uma hora. Mas aqui os pombos —e o grupo de resgate— recebem a sua melhor reação durante todo o dia, das pessoas que vivem nas proximidades deles, nas ruas de Londres.

"Vocês são anjos", um morador de rua sorri para nós, enquanto outro compartilha seu jantar com uma multidão de pássaros.

Este texto foi publicado originalmente aqui.

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