Mesmo com boas intenções, 'Nos Tempos do Imperador' não é imune ao racismo estrutural
Cena que citou racismo reverso mostra como temos chão pela frente
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“Sabe quem é um dos maiores culpados pelo preconceito? A nossa cabeça. Para que os outros parem de ver a nós, negros, como diferentes, nós precisamos parar de nos ver como diferentes. Como piores ou melhores do que determinada raça”.
A fala acima foi proferida pela coordenadora Helô, vivida pela atriz negra Elina Silva, no capítulo 61 da novela “As Aventuras de Poliana”, do SBT. A personagem tentava convencer uma aluna, também negra, de que não havia racismo na escola Ruth Goulart, um dos principais cenários da trama.
Exibida em agosto de 2018, a cena provocou um escarcéu. A equipe de roteiristas comandada por Íris Abravanel, mulher de Silvio Santos, não contava com um único negro, e não faltou quem lembrasse do longo histórico da emissora de piadinhas preconceituosas e falta de sensibilidade às pautas identitárias. No entanto, ninguém no SBT pediu desculpas, e o caso ficou por isto mesmo.
Três anos depois, algo semelhante aconteceu com “Nos Tempos do Imperador”, atual ocupante da faixa das 18 horas da Globo.
“Só porque você é branca, não pode morar na Pequena África? Como queremos ter os mesmos direitos, se fazemos com os brancos as mesmas coisas que eles fazem com a gente?”, disse o negro Samuel, papel de Michel Gomes, para a branca Pilar, interpretada por Gabriela Medvedovski.
A fala causou justa indignação nas redes sociais, porque colocou na boca de um personagem negro uma falácia frequentemente usada por racistas brancos: a de que existiria o chamado racismo reverso, em que negros discriminam brancos.
Contra a Globo, pesa o fato de a emissora vir fazendo um esforço para aumentar a diversidade em frente e atrás das câmeras. De que adianta dar oportunidade a tantos atores negros, se é para eles dizerem diálogos equivocados como este?
“Nos Tempos do Imperador” vem sendo elogiada pela produção caprichada e pela minuciosa pesquisa de época, mas escorregou feio neste episódio.
A seu favor, ressalte-se que a autora Thereza Falcão, que assina o texto junto com Alessandro Marson, reconheceu o erro e pediu desculpas imediatas.
“Eu mesma, quando vi a cena aqui em casa, falei: o que foi isso? Todos os capítulos que vão ao ar até o 24 foram escritos em 2018, gravados na ampla maioria em 2019”, disse ela. “Na época não contávamos com uma assessoria especializada, o que só aconteceu no ano passado, com a entrada do [pesquisador de cultura afro-brasileira] Nei Lopes. Hoje assisto a muitas cenas com uma sensação muito longínqua. Mais uma vez pedimos desculpas por cometer um erro grosseiro como este.”
Menos mal, mas essa não é a única polêmica a rondar “Nos Tempos do Imperador”. Muitas críticas se dirigem a uma suposta edulcoração de D. Pedro 2º, retratado na TV como um simpatizante da abolição da escravatura. A verdade histórica é mais complexa. A família imperial de fato não tinha escravizados a seu serviço, e adquiriu diversos cativos ao longo dos anos apenas para alforriá-los. Mas nada disso redime o fato de a escravidão ter sido extinta no Brasil apenas em 1888, quase meio século depois de ser abolida em diversos países do mundo.
A controvérsia em torno de “Nos Tempos do Imperador” serviu para ilustrar dois pontos. Um deles é a dificuldade de produzir dramaturgia “de época” nos dias de hoje. Estamos revendo o papel histórico de inúmeros vultos, e concluindo que muitos dos que considerávamos heróis estavam mais para bandidos.
É complicado cobrar dessas figuras do passado um comportamento compatível com os valores atuais, pois as mentalidades eram outras. Mas toda ficção de época só faz sentido se conversar com o tempo em que é produzida. Por isto, é positivo que a equipe responsável por “Nos Tempos do Imperador” esteja revendo cenas potencialmente incendiárias, e reeditando alguns capítulos.
O outro ponto revelado por este bafafá é a persistência do racismo estrutural entre nós. Mesmo um produto televisivo carregado de boas intenções como “Nos Tempos do Imperador” não está livre dele.
É verdade que o time de roteiristas da novela tem um integrante negro, o também ator Wendell Bendelack, e 80% dos personagens negros são libertos, não escravizados, justamente para quebrar o clichê do negro submisso tão comum em obras do gênero.
Mas o racismo estrutural permeia toda a sociedade brasileira, e conseguiu dar as caras em uma trama que se propõe a ser antirracista. Identificá-lo e assumi-lo é o primeiro passo para erradicá-lo.